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Uma comissão especial da Câmara dos Deputados formada por 34 parlamentares aprovou, na última terça-feira (8), o Projeto de Lei (PL) 399/2015, cujo texto substitutivo ao original estabelece o marco regulatório da Cannabis no Brasil. Na prática, a proposta autoriza atividades como cultivo, processamento, armazenagem, transporte, industrialização, manipulação e comercialização, de produtos à base de maconha no país.
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O acirramento no placar da votação, com 17 votos favoráveis e 17 contrários – placar que foi desempatado pelo relator, Luciano Ducci (PSB-PR) – reflete a complexidade do tema. Uma das plantas da família Cannabis é a Cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha, que está ligada a uma série de danos à saúde. No entanto, o canabidiol, uma das substâncias da planta, possui propriedades medicinais, e é utilizado no tratamento de crises convulsivas, sobretudo para crianças e adolescentes.
Como atualmente não é permitido o cultivo da Cannabis no país, a demanda por medicamentos à base da planta é atendida a partir da importação dos produtos, porém isso se traduz em altos preços, que muitas vezes acabam inviabilizando a aquisição. O texto inicial do PL 399/2015 tinha como objetivo tornar mais fácil a aquisição desses medicamentos para os pacientes, mas a redação final alterou significativamente a proposta.
Enquanto o primeiro texto continha apenas três artigos, que previam unicamente a viabilização do comércio de medicamentos derivados da planta Cannabis sativa em sua formulação, o novo texto contém 33 itens que versam sobre diversos aspectos relacionados ao uso da planta, além de um anexo com 60 artigos que tratam das regras para o cultivo, manejo e processamento da Cannabis.
Fontes ouvidas pela Gazeta do Povo apontam que o marco regulatório da Cannabis traz riscos, tanto em termos de saúde quanto de segurança pública. Os principais pontos citados são as dificuldades para a fiscalização adequada dos locais de plantio da Cannabis, o que poderia alimentar o comércio de maconha no país, que é ilegal; a ampla flexibilidade na prescrição médica de produtos à base de Cannabis; e uma possível redução da percepção do risco que a maconha representa.
O que diz o marco regulatório da Cannabis no Brasil
O texto substitutivo tem como destaque a permissão do cultivo da Cannabis, mas há uma série de outras atividades abordadas, como por exemplo a exploração industrial da planta – a versão aprovada autoriza a produção e comercialização de produtos fabricados a partir do cânhamo industrial, como cosméticos, itens de higiene pessoal, produtos de uso veterinário e itens alimentícios. Há, entretanto, vedação à produção e comércio de produtos fumígenos fabricados a partir da planta.
Para minimizar os riscos de desvirtuamento das finalidades descritas, a proposta contém uma série de exigências para cultivo, manuseio, transporte e demais etapas. Apesar de tentativas - por parte de parlamentares como a deputada Natália Bonavides (PT-RN) e o deputado Alexandre Padilha (PT-SP) - de incluir a permissão ao cultivo doméstico da Cannabis para pessoas físicas, o texto aprovado autoriza o cultivo da planta apenas a pessoas jurídicas.
Os locais destinados ao plantio devem possuir rede de videomonitoramento em todos os pontos de entrada, com restrição de acesso e sistema de alarme de segurança. Todo o perímetro das instalações deverá ser protegido com telas de aço ou muros de alvenaria, ambos com no mínimo dois metros de altura e providos de cercas elétricas com tensão suficiente para impedir a invasão de pessoas não autorizadas. Além disso, interessados no cultivo deverão ser previamente autorizados pelo poder público e precisarão apresentar um plano de segurança capaz de efetivar todas as medidas de controle.
Para Lucas Gualtieri, procurador da República e coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público Federal em Minas Gerais, as diversas exigências de segurança apresentadas evidenciam o risco que representam eventuais desvirtuamentos da utilização da planta.
“Esse risco existe, inclusive a experiência de outros países, como o Uruguai, que seguiu um caminho parecido, mostra essa realidade. Lá se verificou o fenômeno que é chamado de ‘mercado cinza’, que é o mercado decorrente do desvio da maconha plantada nas fazendas autorizadas. Essa é uma preocupação muito relevante que não pode ser deixada de lado”, declara.
O promotor explica que, apesar das medidas de segurança determinadas, o poder público não tem condições de fiscalizar adequadamente a aplicação dessas exigências. “Estamos num cenário de restrição orçamentária pela PEC do Teto de Gastos, e a aprovação desse projeto vai demandar ações fiscalizatórias mais amplas e mais complexas. O receio é que diante desse cenário de falta de condições materiais, a questão seja flexibilizada e se concretizem todos esses riscos de desvio da finalidade inicial do projeto”, diz o procurador.
O coordenador do Gaeco também cita um impasse presente no texto substitutivo: o alto investimento para a implementação e manutenção das medidas de segurança implicaria em altos custos finais para os produtos, o que comprometeria um dos propósitos iniciais do projeto de lei. “É uma questão complexa, pois não se deve diminuir as exigências. Por outro lado, o que se pondera é: o efeito pretendido [redução de custos de medicamentos] será alcançado? Aí volta à questão da necessidade ou não de autorizar o plantio”, ressalta Gualtieri.
Projeto de lei representa riscos à saúde pública, diz psiquiatra
Outra preocupação central quanto ao marco regulatório da Cannabis no Brasil está ligada à saúde pública. Para Quirino Cordeiro, médico psiquiatra e secretário da Secretaria Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas (Senapred), a proposição não atende adequadamente quem necessita dos medicamentos, além de indiretamente permitir o acesso de dependentes químicos a produtos à base de maconha. “Se o propósito é a liberação dos medicamentos, o foco deveria ser criar regulamentações para o mercado e incorporar os medicamentos gratuitamente no Sistema Único de Saúde (SUS) e não liberar o plantio no país”, afirma.
O psiquiatra explica que a proposta autoriza a fabricação de produtos derivados de Cannabis com altos teores de Tetrahidrocanabinol (THC) – substância responsável por efeitos psicoativos e neurotóxicos prejudiciais à saúde – ao mesmo tempo em que flexibiliza as prescrições médicas.
Um dos artigos do substitutivo cita: “Não haverá restrição quanto aos critérios terapêuticos para a prescrição de medicamentos ou de produtos de Cannabis medicinal de uso humano ou veterinário, desde que seja feita por profissional legalmente habilitado”.
Segundo o médico, na prática, está sendo liberado o uso de produtos com altos teores de THC com a prescrição médica amplamente flexibilizada, sem ser necessária nenhuma comprovação científica para seu uso. “Isso vai favorecer com que indivíduos que são dependentes químicos busquem receitas médicas para obter esses produtos prejudiciais à saúde não para uso terapêutico, mas como entorpecente”, afirma Cordeiro.
O delegado da Polícia Federal Marcos Paulo Pimentel, que integra a Coordenação-Geral de Polícia de Repressão a Drogas, Armas e Facções Criminosas, aponta que apesar de serem comprovados benefícios para casos específicos de epilepsia infantil refratária, a prevalência da epilepsia na população em geral é de 0,5 a 1% e, desses, somente cerca de 30% são refratários, isto é, não obtêm melhora com os tratamentos convencionais anticonvulsivos. Dessa parcela, explica ele, muitos são adultos, mas os benefícios desses medicamentos à base da Cannabis são direcionados a crianças.
“Então quando se fala em Cannabis medicinal há um apelo muito grande porque há famílias que, de fato, sofrem muito com isso. Mas estamos falando de um percentual muito pequeno da população. Sendo uma situação tão excepcional, poderiam ser buscadas outras medidas que não fossem o plantio local, como subsídio do SUS para importação dos medicamentos ou até mesmo uma produção estatal”, diz o delegado. Ele destaca ainda que apesar de ser comum a argumentação de que as propriedades da planta podem ser úteis para outros quadros clínicos, como insônia e depressão, não há evidências científicas que comprovem tais benefícios.
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Redução da noção de risco preocupa contrários ao projeto
Outro ponto de atenção apontado por contrários ao substitutivo do PL 399 é a forma como a proposta tem sido divulgada por favoráveis ao tema, como estritamente vinculada ao uso medicinal da Cannabis. Em live transmitida pela Gazeta do Povo com o deputado federal Diego Garcia (Podemos-PR), na quarta-feira (9), o parlamentar disse que o projeto tem sido “vendido” à população como direcionado exclusivamente a fins medicinais, mas as amplas permissões contidas no projeto ultrapassam a questão terapêutica.
“Com esse texto substitutivo, não estamos mais discutindo apenas o uso medicinal. Agora estamos discutindo também plantação e produção de produtos de beleza, produtos alimentícios, produção têxtil. E a maior parte da população não sabe disso ou estão sendo informados por parte da mídia que o projeto é apenas para uso medicinal”, disse o deputado.
Para Cordeiro, até mesmo os termos “Cannabis medicinal” ou “maconha medicinal”, os quais têm sido usados à exaustão, são impróprios. O médico explica que, segundo a literatura científica, há uma molécula da Cannabis, que é o canabidiol, que tem ação terapêutica para tratar quadros clínicos convulsivos que não respondem adequadamente ao uso de medicamentos convencionais. “Hoje as evidências científicas apontam nessa direção. Entretanto, os estudos de meta-análise não dão sustentação para que o canabidiol possa ser utilizado no tratamento de outros quadros clínicos que não sejam crises convulsivas”.
Para o psiquiatra, o termo “Cannabis medicinal” tem sido utilizado para reduzir na população a percepção dos riscos relacionados à droga. “A maconha traz uma série de problemas para seus usuários: ela altera o neurodesenvolvimento e é fator de risco para quadros psicóticos, tais como esquizofrenia, ansiedade, depressão e déficits cognitivos. Fazer a sociedade enxergar isso de outra maneira é o primeiro grande risco”, afirma Cordeiro.
Gualtieri endossa a declaração do psiquiatra: “Não podemos negar que algumas propriedades da planta têm, de fato, benefícios do ponto de vista medicinal. Mas é preciso deixar muito clara essa diferenciação: não é porque a maconha tem essas propriedades que ela deixa de ser uma droga e deixa de trazer malefícios para a saúde com seu uso indiscriminado”, diz o procurador da República.
A posição institucional da Polícia Federal quanto ao tema é que existe preocupação quanto à redução na percepção dos risco do uso da Cannabis e, consequentemente, isso pode levar ao aumento no consumo da droga.
De acordo com Pimentel, a possibilidade de exploração industrial da planta, com a produção de itens como roupas, produtos alimentícios e cosméticos, pode levar a uma queda na noção do risco principalmente entre a população mais jovem.
“Uma vez que se pensa que é remédio, que não faz mal, que está na roupa, no caderno, no produto de beleza, isso pode ser um estímulo para o aumento do consumo que já é alto no Brasil”, explica o delegado da Polícia Federal. “Esse consumo ‘recreativo’, que é abusivo, vai ser atendido de alguma forma e aí entra na seara da segurança pública - com possibilidade de aumento de mercado a ser explorado pelas organizações criminosas”, ressalta.
Próximos passos
Como a proposta aprovada na comissão especial na Câmara dos Deputados tramitou em caráter conclusivo, não seria votada no plenário da Casa e iria direto para apreciação no Senado. O deputado Diego Garcia, entretanto, apresentará, nos próximos dias, um recurso para que o projeto de lei seja discutido e analisado por todos os parlamentares da Câmara.
“É um recurso para quebrar a conclusividade da matéria na comissão e assim levar essa discussão de extrema relevância para a decisão do colégio maior, que são os 513 deputados. E nós entendemos que num tema tão complexo é importantíssimo que isso aconteça”, afirma Garcia.
Até o fechamento desta matéria, o parlamentar já havia conseguido assinaturas de 85 deputados, ultrapassando as 52 necessárias para solicitar o recurso de acordo com o regimento da Câmara. Caso a medida não prospere, o texto passa diretamente para votação no Senado.