Em agosto de 2020, a Lei Maria da Penha, considerada pela ONU Mulheres uma das três melhores do mundo no enfrentamento da violência contra a mulher, completa 14 anos. A lei não pôs fim às agressões e assassinatos de mulheres por seus parceiros ou ex-parceiros. Está longe disso. Nessa quase década e meia o número de casos caiu apenas 10%, segundo o Instituto Maria da Penha - organização não governamental criada para divulgar a lei. Diariamente milhares de mulheres de todas as idades, níveis sociais e educacionais ainda são vítimas de violência no Brasil por parte de homens com quem convivem.
A lei, porém, conseguiu jogar luz sobre um problema antes escondido pelas quatro paredes dos lares brasileiros e pela vergonha das vítimas: a violência doméstica. Quebrou-se a barreira cultural que pregava que "em briga de marido e mulher não se mete a colher". O assunto entrou na pauta da mídia, passou a ser discutido em sala de aula, virou tema de palestras e de rodas de conversa.
Leia abaixo: O tortuoso caminho até a criação da Lei: conheça a história de Maria da Penha Maia Fernandes
Hoje, a Lei 11.340/2006, que criou mecanismos para coibir e prevenir a violência contra as mulheres dentro de casa, garantir assistência e abrigo às vítimas e a seus filhos, bem como punir os agressores, é conhecida da maior parte da população.
Por que, então, ainda se ouve falar de tantos casos de abusos, humilhações, agressões e até assassinatos de mulheres no Brasil? A lei é falha e por isso não inibe os agressores? Ou simplesmente não vem sendo aplicada como deveria? Em busca de respostas, a Gazeta do Povo conversou com a própria Maria da Penha, a mulher que batiza a lei.
Confira a entrevista com Maria da Penha Maia Fernandes:
O que mudou de 2006, quando a lei foi aprovada, para cá?
Maria da Penha: Quatro políticas públicas necessárias para a lei funcionar estão plenamente implantadas: Centro de Referência; Delegacia da Mulher; Casa Abrigo, que vai resguardar essa mulher se ela estiver correndo risco de vida; e o Juizado da Mulher. Quando a lei foi criada, esses equipamentos também foram criados nas grandes cidades, que geralmente são as capitais, porque senão a lei não funciona. E agora cabe expandir isso para as cidades menores.
Por que as estatísticas de violência contra a mulher não despencaram? Há falhas na lei?
Maria da Penha: A lei é completa, mas fatos novos vão acontecendo e as pessoas precisam muitas vezes mudar suas condutas dentro do que era normal e depois já começa a não ser.
A gente vê, por exemplo, que um grande número de mulheres foram assassinadas porque a medida protetiva falhou. E quem aprova medida protetiva são os juízes.
Então não é simplesmente pegar um processo e adotar medida protetiva. Tem que ver o que ainda pode causar algum problema para aquela mulher e ter um cuidado maior. Ela pode continuar na casa? Vamos encaminhá-la para um abrigo até passar essa fase inicial?
O problema está no Judiciário? Nas medidas protetivas estabelecidas pelos juízes?
Maria da Penha: Não é só a medida protetiva. Por exemplo, tem uma senhora que sofre violência e na outra quadra da casa dela existe uma delegacia. Ela chega nessa delegacia e o delegado manda que vá para a Delegacia da Mulher, que aqui "eu não atendo violência contra a mulher". Mas é pra atender! Isso aí eu vi vários relatos já, em várias cidades. Cadê a capacitação desse delegado, desse policial? A mulher não tem condição de ir, pegar um transporte, procurar onde é que fica a Delegacia da Mulher.
A questão da Casa da Mulher Brasileira veio pra sanar essa situação de deslocamento e de ter pessoas melhor capacitadas, porque todos lá estão imbuídos em fazer a lei funcionar e proteger essas mulheres. É para ter no Brasil inteiro, não só nas capitais.
Enquanto isso não acontece os governos estaduais precisam treinar melhor os delegados das cidades menores?
Não só os delegados precisam ser treinados. Todos os profissionais dos Centros de Referência da Mulher: advogado, psicólogo, assistente social. Eles têm que saber da problemática dessa mulher e conseguir criar uma situação de defesa dessa mulher. Para onde ela vai quando sair de casa, se essa mulher precisa pegar seus pertences, que ela vá acompanhada de um policial, porque ela vai enfrentar um perigo. Eu acho que todos os profissionais envolvidos na questão precisariam ser capacitados anualmente.
Em que situações a lei tem funcionado?
Maria da Penha: A lei funciona quando existe a política pública, um Centro de Referência da Mulher, que é o local onde a mulher vai se inteirar sobre os seus direitos, vai tomar conhecimento no caso específico dela, como essa equipe vai poder ajudá-la. E vai entender que ela não precisa dar resposta naquele momento. Ela vai conhecer sobre os seus direitos e discutir, talvez num outro momento, o que é melhor para ela fazer. Se ela estiver segura do planejamento dessa equipe, vai aceitar. E isso é muito importante.
Como os governos locais podem ajudar?
Maria da Penha: Os pequenos municípios podem ter suas políticas públicas. Se houver uma parceria entre esses municípios é possível diminuir os custos [de implantação de um Centro de Referências da Mulher], desde que haja um entendimento de que "meu município faz isso e o seu faz aquilo".
O Instituto Maria da Penha, que a senhora preside, dá destaque à conscientização e tem trabalhado nas escolas. Por que focar nas crianças?
Maria da Penha: O relatório do meu caso [de duas tentativas de homicídio pelo ex-marido], que foi dado pelo Comitê Interamericano de Direitos Humanos da OEA, já falava que é necessário investir em educação, para que as crianças já comecem a respeitar seus colegas, as meninas tenham acesso às brincadeiras que os meninos têm. Os meninos não são melhores do que nós. Isso parte da educação em casa e muitas vezes parte dos próprios professores, que foram criados nessa cultura. Então, quando o professor diz que os meninos podem ir para o recreio e as meninas ficam para arrumar a sala para a próxima aula, isso é uma discriminação.
A senhora ouve muitos relatos desse tipo?
Maria da Penha: Sim. Eu não sou professora, mas eu sei que existe isso. Como também na própria casa das pessoas, se a mãe não é atenta a essa evolução da sociedade, quantas e quantas vezes elas dizem que os meninos podem brincar e “você vem ajudar a sua mãe aqui na cozinha, a lavar louça, arrumar as camas”, isso aí é muito colocado nas rodas de conversa [do Instituto Maria da Penha, em Fortaleza (CE)].
O instituto não atende vítimas de violência?
Maria da Penha: Não. O papel do instituto é investir em educação, através de parcerias com as universidades, para a formação de líderes comunitárias, que depois interagem com as mulheres agredidas, informando como proceder para fazer a denúncia e se libertar do agressor. E também faz projetos estatísticos.
A gente se preocupa com as vítimas invisíveis da violência doméstica, que são os órfãos. Já sabemos que para cada mulher assassinada, em média, ficam três crianças na orfandade.
A gente se preocupa porque o homem matou uma mulher, a mãe desse homem vai levar esse neto para o Conselho Tutelar para prender [o agressor], que é filho dela? Não vai. É mais comum os filhos ficarem com o pai ou com a avó paterna. E o que acontece nessa convivência? Já pensou se o menino é danado? [A criança ouve:] "Por isso que o teu pai matou tua mãe, você puxou tua mãe". Ela justifica que a mãe devia morrer, porque era muito "briguenta", que o "pai matou porque ela merecia", assim como "bate porque ela merece".
Nunca existiu preocupação de governos com essas vítimas invisíveis e continua sem existir. Quando começamos essa pesquisa, em 2016, foi a primeira vez que foi dada visibilidade para a existência dessas crianças.
Como a senhora se sente hoje depois de todos esses anos de aplicação da lei contra o agressor no ambiente doméstico?
Maria da Penha: Eu sou uma pessoa feliz. Eu consegui mudar alguma coisa para as mulheres do país. Existe um aumento muito grande de denúncias e isso está relacionado ao entendimento de que a mulher não está tendo mais vergonha para denunciar.
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Conheça um pouco da história de Maria da Penha Maia Fernandes
Maria da Penha Maia Fernandes é uma farmacêutica e bioquímica de Fortaleza, Ceará. Ela conheceu o homem com quem viria a casar e ter três filhas, um economista colombiano, quando fazia mestrado na Universidade de São Paulo (USP). Ele era aluno da pós-graduação em Economia.
Enquanto esteve casada, dos 31 aos 38 anos de idade, foi vítima de agressões em casa. Ela e as três filhas do casal, todas na primeira infância. Maria da Penha não tinha coragem para denunciar. Até que levou um tiro de espingarda pelas costas enquanto dormia e ficou paraplégica. O marido alegou que o tiro que a mulher sofreu foi resultado de um assalto à residência.
Ao voltar do hospital numa cadeira de rodas, o marido tentou eletrocutá-la enquanto ela tomava banho. Maria da Penha, então, procurou a polícia, mas enfrentou quase 20 anos de leniência do Judiciário. O marido foi condenado duas vezes e não era preso.
Em 1994, aos 49 anos, a farmacêutica gritou por socorro de novo ao relatar sua história no livro "Sobrevivi... posso contar". Duas entidades - o Centro para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CEJIL), ofereceram ajuda e denunciaram o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). O Brasil foi responsabilizado internacionalmente pela forma negligente com que tratava os casos de violência doméstica e se viu obrigado a mudar as leis do país.
O ex-marido, o colombiano Marco Antonio Heredia Viveros, acabou preso, mas não chegou a ficar dois anos na cadeia.
A Lei Maria da Penha foi aprovada em 07 de agosto de 2006 e leva o nome da farmacêutica e bioquímica como reparação simbólica pelos quase 20 anos de omissão do Estado brasileiro em punir o agressor.
Hoje, ela está com 74 anos e preside o Instituto Maria da Penha.
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