Em boa parte dos currículos e textos destinados a defender a afromatemática o que prevalece é o viés político.| Foto: Unsplash
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Embora seja inegável que os povos africanos desenvolveram saberes que podem ser incorporados ao ensino da matemática como uma forma de diversificar e ampliar o entendimento dessa ciência, em boa parte dos currículos e textos destinados a defender a chamada afromatemática no Brasil o que prevalece é a doutrinação de esquerda. Em vez de ensinar como trabalhar esses saberes, currículos e trabalhos acadêmicos privilegiam a ideologia identitária - e deixam de lado a aprendizagem da disciplina.

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Uma das primeiras universidades a incorporar a afromatemática na formação dos futuros professores de matemática foi a Universidade Federal do ABC (UFABC). Em 2017, a universidade incorporou duas disciplinas no curso de licenciatura em matemática sobre a temática. A primeira delas, chamada “Estudos Étnicos-Raciais”, tem como proposta oficial “oferecer aos discentes uma síntese do conhecimento atual sobre os estudos étnico-raciais, visando atender diretrizes do MEC, que versam sobre a necessidade de cursos específicos que discutam a questão étnico-racial no Brasil”. Na ementa da disciplina, constam itens como “paradigma eurocêntrico”; “racismo e a formação do mundo atlântico”; “escravismo brasileiro”; “mito da democracia racial no Brasil”; e “desigualdades raciais no Brasil”.

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A segunda disciplina relacionada ao tema é batizada oficialmente de “Seminários de Modalidades Diversas em Educação”. Entre os temas que são discutidos durante as aulas da disciplina estão “fundamento eurocêntrico da educação brasileira” e “racismo como um elemento estruturante das desigualdades”. Só depois desses tópicos é que os alunos começam a estudar a afromatemática, propriamente dita, trabalhando temas como geometria a partir da cultura africana; história da afromatemática, fractais africanos, entre outros.

Origem política

As duas disciplinas foram incluídas na grade curricular na UFABC por pressão do Coletivo Negro Vozes. Aproveitando um momento em que o curso de licenciatura em matemática passava por mudanças e teria sua carga horária aumentada, o coletivo resolveu propor duas novas disciplinas: Estudos Étnicos-raciais, que permaneceu com o mesmo nome, e “Afro-matemática como Transformadora Social”, mais tarde batizada como “Seminários de Modalidades Diversas em Educação”. A ideia era “problematizar e desenvolver metodologias e percepções que busquem a dialogar entre a educação e as relações sociais, buscando romper com os moldes da educação reprodutora do racismo” – ou seja, um viés bem pouco científico e muito político.

Oficialmente, o Coletivo Negro Vozes se apresenta como “Entidade Representativa da Universidade Federal do ABC que visa aumentar a entrada e a permanência da população negra universitária”. Mas o grupo, declaradamente, também tem viés político. “Buscamos acolher as pessoas negras que fazem parte do espaço universitário, aumentar a integração dessas pessoas e buscamos também ajudá-las no auto reconhecimento enquanto pretos. Somos um coletivo com atuação política, apartidário. Buscamos manter contato com a comunidade externa, nunca perdendo o foco das questões internas”, diz o grupo nas redes sociais.

A proposta da inclusão das duas disciplinas foi feita pelo coletivo sob justificativa de que a disciplina de matemática seria uma das responsáveis pela “exclusão de negros e negras das escolas”. Foi o coletivo, formado por professores e principalmente estudantes, que elaborou a propostas das disciplinas, incluindo os temas que seriam discutidos.

Temática imposta por meio de lei

De acordo com a Lei 10.639/2003, passou a ser obrigatório no Brasil a inclusão da temática "História e Cultura Afro-Brasileira" na grade curricular da educação básica no Brasil. De acordo com a lei, todo o currículo do ensino fundamental e médio deve tratar da temática, não sendo necessário uma disciplina específica. Assim, os professores podem incluir essa temática também no ensino de matemática. E para preparar os professores para isso, universidades como a UFABC passaram a oferecer aulas sobre afromatemática.

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Mas isso também passou a ser usado como justificativa para incorporar discursos ideológicos que tentam problematizar o conhecimento matemático do ponto de vista histórico, sociológico e cultural. No lugar do estudo de teorias e problemas matemáticos, passa-se a travar uma verdadeira luta contra o “eurocentrismo” ou a “colonização dos currículos”, termos, aliás, bastante comuns em artigos científicos publicados por autores brasileiros.

Na Revista Internacional de Pesquisa em Educação Matemática, por exemplo, é possível encontrar um artigo de três pesquisadores brasileiros intitulado “O Racismo Contemporâneo em Projetos Pedagógicos de Cursos de Licenciatura em Matemática”. Entre outros pontos, os autores, vinculados às universidades UFABC, PUC-SP e USP, defendem “problematizar o ensino eurocêntrico enraizados no cerne da sociedade e desconstruir o racismo, para assim, propor uma nova forma de enxergar as relações, as estruturas, as instituições como uma mudança cultural e política nos campos curricular, epistemológico, conceitual e pedagógico”.

O que é afromatemática

Resumidamente, a afromatemática propõe que as descobertas e conhecimentos de povos africanos na área de matemática, física e outras ciências exatas sejam redescobertas e valorizadas. Um dos principais nomes dessa área seria o Pauulus Gerdes, um holandês (branco) que estudou Matemática, Física e Antropologia Cultural. Apaixonado pela cultura africana, Gerdes, falecido em 2014, estudou e elaborou teorias matemáticas sobre o artesanato e imaginário popular dos povos africanos. Até hoje, seus trabalhos aparecem nos currículos das disciplinas de afromatemática. Ele também foi professor visitante da Universidade de São Paulo (USP), além de ter sido consultor do projeto “Brasil-África: Histórias Cruzadas”, desenvolvido pela Unesco em parceria com o Ministério da Educação em 2010 e que tinha como objetivo principal a elaboração de textos e orientações de atividades a serem desenvolvidas em sala de aula para atender a Lei 10.639/2003.

O movimento em favor de uma matemática “mais étnica” começou a se tornar mais forte a partir da década em 1980, dentro do próprio território africano, com a criação da Comissão de História da Matemática na África, na União Africana de Matemática (AMUCHMA, na sigla em inglês). Entres os objetivos do grupo está o de “promover a investigação em história da matemática em África e a publicação dos seus resultados, de forma a contribuir para a desmistificação do viés eurocêntrico ainda dominante na historiografia da matemática”. O grupo mantém publicações e eventos periódicos sobre o assunto, publicando ainda biografias de doutores e matemáticos africanos. Diferentemente das publicações brasileiras sobre o tema, o viés científico ou pedagógico é predominante.

Guerra das matemáticas

A ênfase na “descolonização dos currículos” faz com que a afromatemática acabe sendo apresentada ideologicamente como “superior” ou “precursora” de teorias ou problemas matemáticos tradicionais. A matemática chamada de “eurocêntrica”, seria superestimada, e as contribuições de outros povos simplesmente “esquecidos” ou “apagados” de forma deliberada por motivos raciais. É possível ver esses argumentos em diversos artigos publicados em revistas científicas. Na Revista da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), por exemplo, esse argumento aparece no artigo “Etnomatemática como fomentadora de transformação social”. O texto defende a ideia de que “existe nitidamente uma hipervalorização da ciência euro centrada, ou seja, ela é difundida massivamente pela ideia de que somente a Europa e o Ocidente foram e são capazes de produzir/desenvolver conteúdo científico de extrema relevância para a sociedade”.

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Outro artigo, “Afroetnomatemática, África e Afrodescendência”, do professor titular da Universidade Federal do Ceará, Henrique Costa Júnior diz haver uma grave deficiência no ensino de matemática em todo sistema educacional, mas insiste em dizer que o ônus dessa deficiência “leva sempre a submissão e a inferiorização dos afrodescendentes, [...] dando a impressão de que temos uma dificuldade genética para a o aprendizado da matemática”.

Mais adiante, o autor diz que o jogo de búzios, usado dentro das religiões africanas como uma forma de oráculo, é, na verdade, a prova de que os povos africanos já conheciam a álgebra booleana, muito usada em programação. Já a Teoria do Caos, que só muito recentemente começou a ser estudada pela física e pela matemática, era representada há séculos na figura da deusa Oya ou Iansã, que segundo a cultura africana está relacionada com os ventos e tempestades. “Esta impressionante constatação mexeu demais com a minha emoção e com o meu respeito, para com os conhecimentos de Terreiro, ou melhor, dizendo, o conhecimento guardado pelas sociedades tradicionais afrodescendentes”, escreve ele.

Quem perde

Para o antropólogo e doutor em Educação, Augusto Sá, o uso da Afromatemática para fins políticos ou ideológicos é prejudicial para a formação dos futuros professores de matemática. Ele lembra que, embora o debate sobre racismo seja importante dentro do ambiente universitário, ele não deve subjugar a questão pedagógica. “A afromatemática possui recursos muito interessantes que podem tornar o ensino da matemática muito mais atrativo aos olhos dos estudantes. Mas a politização excessiva extingue esses atrativos”, defende ele.

Ainda segundo Sá, a falsa ideia de que haveria duas supostas matemáticas – eurocêntrica e afromatemática -, pode fazer com que os estudantes acabem achando que dentro das ciências exatas existem “partidos”, em detrimento da evidência científica. “Nas Ciências Exatas, o apreço ao dado correto, ao cálculo e à comprovação matemática é a base de tudo. Isso deve prevalecer acima de qualquer posição política, partidária ou social. Se um jovem começa a achar que determinada teoria ou fórmula matemática tem cor, raça ou gênero, ou pior ainda, que pode ser opressora ou racista, não teremos mais ciência, apenas ideologias”, finaliza o professor.