Após lidar, nos últimos anos, com a perda de lideranças e polêmicas que custaram caro à imagem do grupo, o Movimento Brasil Livre (MBL) tenta ressurgir como uma das grandes forças da direita brasileira. Com o reforço de novos membros, o movimento traça um planejamento ambicioso para os próximos anos: criar um partido; eleger, em 2024, Kim Kataguiri como prefeito de São Paulo e ao menos 20 vereadores em diferentes regiões do país; e ganhar corpo para ter impacto nas eleições de 2026 – se possível, com um candidato próprio à presidência da República.
Há, no entanto, um contexto desafiador para o movimento, que teve rápida projeção em 2015 graças à organização de uma série de manifestações que contribuíram para o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), mas que nos últimos anos tem sofrido as “dores do crescimento” para se manter ativo e influente na política nacional.
Apoiado em bandeiras caras à direita brasileira da época como o antipetismo, a luta contra a corrupção, a necessidade de reformas estruturais e, principalmente, o apoio à Operação Lava Jato, o movimento se consolidou após o impeachment de Dilma e desde 2016 passou a eleger representantes para cargos eletivos.
No entanto, constantes atritos com outros representantes da direita, em especial o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e seus apoiadores, fizeram com que o movimento se fragmentasse e perdesse vários de seus integrantes. Um deles é o vereador de São Paulo Fernando Holiday, que deixou o grupo em 2021. Hoje, Holiday é filiado ao PL, partido de Bolsonaro, e conta com as bênçãos do ex-presidente.
No início de 2022, ano eleitoral, Arthur do Val, um dos mais conhecidos integrantes do MBL e até então deputado estadual por São Paulo, entrou em uma enorme polêmica ao ter um áudio vazado, considerado machista. Os impactos foram tão grandes que ele acabou perdendo o mandato na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) e teve seus direitos políticos suspensos por oito anos.
O episódio foi um duro golpe na imagem do MBL, que lançaria em breve Do Val como candidato ao governo de São Paulo. Meses depois, o movimento decidiu manter isenção na disputa entre Bolsonaro e Lula (PT) para a presidência da República. A decisão não espantou aqueles que integram a corrente do chamado “bolsonarismo”: já no primeiro ano de mandato, o movimento rompeu com Bolsonaro e passou a ser um crítico ferrenho da gestão do ex-presidente. Chegou, inclusive, a protocolar pedidos de impeachment contra ele e organizou passeatas pedindo sua saída.
Diferente de outros anos, na disputa presidencial de 2022 o MBL acabou tendo uma influência tímida. As tentativas de eleger membros também não foram tão exitosas – o movimento conseguiu eleger apenas dois parlamentares, sendo Kim Kataguiri (União) reeleito deputado federal, e Guto Zacarias (União) eleito deputado estadual por São Paulo.
De olho nas eleições de 2024, movimento se reforça para repor saída de desertores
Saídas de integrantes foram uma constante do MBL nos últimos anos: além de Holiday, outras perdas relevantes foram do vereador de São Paulo Rubens Nunes (União Brasil), que atuava como advogado do grupo desde sua fundação, em 2014; e Lucas Pavanato. Outras lideranças estaduais também optaram por deixar o grupo.
Por outro lado, novas lideranças vêm ganhando espaço. Alguns exemplos são Amanda Vettorazo e Renato Battista, ambos do União Brasil. Os dois tentaram uma vaga para deputado estadual por São Paulo no ano passado e somaram mais de 54 mil votos cada um. No Paraná, João Bettega (Novo) somou 27 mil votos. Apesar de não terem sido eleitos, os candidatos de primeira viagem tiveram votação expressiva.
Para serem conhecidos pelo eleitorado da direita, as novas apostas investem em vídeos gravados nas ruas confrontando opositores. Uma das recentes iniciativas do movimento, lançada em julho deste ano, é um projeto de denúncia de vandalismo de bens públicos por ativistas de esquerda em universidades públicas. Uma visita recente à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), entretanto, gerou consequências sérias: militantes de esquerda espancaram um dos membros do movimento e roubaram seus bens.
A estimativa da coordenação nacional do MBL é que essas novas figuras alcem ao menos 20 cargos de vereadores em diferentes pontos do país. A iniciativa de ampliar o leque de estados em que tenta eleger representantes é uma novidade: até então, o movimento focava quase que todos os seus esforços no estado de São Paulo.
“Temos vários nomes com perspectiva de serem candidatos em diversos estados. Esse crescimento de novos quadros vai se refletir em novos políticos eleitos, dessa vez de forma muito mais espalhada pelo Brasil e não mais concentrada em São Paulo”, diz Guto Zacarias, um dos coordenadores nacionais.
“Esses novos nomes não têm uma rejeição grande igual outros, como o Arthur [do Val] e o Renan [Santos, fundador e diretor do MBL]. Quem vai disputar as próximas eleições é quem tem a popularidade alta e rejeição baixa, que são esses nomes. Estamos indo para 2024 com mais candidatos do que 2020 e com a esperança de que vai ser nossa melhor eleição”, continua.
Desavença com bolsonarismo e possibilidades de reaproximação
As rusgas com Bolsonaro e apoiadores do ex-presidente representam inicialmente um desafio aos planos do movimento para os próximos anos, já que o bolsonarismo é atualmente o campo mais numeroso da direita brasileira. Um ensaio de reaproximação começou a se desenhar em maio deste ano para uma manifestação contra a cassação do ex-deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR). No entanto, Bolsonaro pediu a apoiadores que focassem a atenção na CPMI dos atos de 8 de janeiro e não no protesto, o que levou à desmobilização da base bolsonarista e a críticas do MBL.
Ao menos por enquanto, não parece haver interesse de nenhuma das partes para reagrupar forças. Até mesmo manifestações em conjunto contra o governo Lula (PT) são pouco prováveis.
“Acho difícil pelo tamanho das brigas que tivemos. Não foram poucas e não foram pequenas. Se nossas pautas tiverem apelo popular para virarem eventuais manifestações, iremos convocar e fazer de tudo para que tenham a maior quantidade de pessoas possível. Se o bolsonarismo quiser embarcar nessas manifestações, o MBL terá que avaliar”, pontua Guto Zacarias.
“Acredito que se a pauta for nossa – a gente estiver defendendo e convocando –, e o bolsonarismo quiser apoiá-la, acho difícil o MBL não aceitar. Já entrar numa manifestação bolsonarista acho que seria difícil, mas de toda maneira cabe avaliar e ver se vale a pena”, declara.
Retórica excessivamente combativa prejudica avanço concreto das bandeiras defendidas, diz especialista
A sustentação política a partir do conflito, abraçando temas de indignação popular, como o combate à corrupção e a má gestão do bem público, sempre foi marca do MBL. No entanto, como pontua o analista político Luan Sperandio, ao longo dos anos essa postura fez o movimento criar inimigos e ser visto por parte da população como pouco propositiva.
“A ciência política mostra que a política pelo conflito, mais reativa do que propositiva, é muito eficaz quando se está num momento de disrupção, como houve muito claramente nas eleições de 2018, que é chamada de ‘eleição crítica’, ou ‘antissistema’. Mas essa busca por reatividade a pautas que geram indignação popular tende a ter um prazo de validade”, explica Sperandio, que é conselheiro do Ranking dos Políticos, organização que monitora os eventos do Congresso Nacional.
Para ele, o MBL ainda aposta muitas fichas na onda da ‘memetização’ da política e na exploração do conflito pelas redes sociais, o que pode limitar a percepção popular sobre a capacidade do grupo de propor soluções em políticas públicas. “O movimento teve um auge, que já passou, e para recuperar sua força e expressividade precisa encontrar uma abordagem um pouco mais propositiva, que busque construir pontes e articular com outras organizações e mandatários para ampliar seu alcance da visão de mundo que defende”, afirma o analista.
“É preciso articulação no ambiente político para fazer as propostas avançarem, e uma postura de outsider na política às vezes cobra seu preço”, reforça.
Desmobilização de ala lavajatista da direita é desafio, aponta cientista político
Na análise de Leandro Gabiatti, doutor em ciência política e diretor da Dominium Consultoria, episódios recentes da política nacional geraram desgaste e frustração na ala da direita brasileira conhecida como “lavajatista”, isto é, que apoia muito mais pautas anticorrupção do que políticos em específico. Essa parcela do eleitorado, explica ele, tende a dialogar mais com bandeiras tradicionais do MBL.
“Há um desapontamento e uma frustração entre os mais lavajatistas que vem desde a renúncia do Moro ao cargo de ministro no governo Bolsonaro. Aí vem uma cisão do movimento conservador com o morismo/lavajatismo de um lado e o bolsonarismo do outro – e o MBL é morista. Mas há uma série de questões que reforçaram esse desapontamento”, explica.
Um desses motivos, aponta Gabiatti, é o próprio desgaste da operação Lava Jato nos últimos anos – o que refletiu na cassação do mandato de Deltan Dallagnol, ex-coordenador da força-tarefa, e num ataque sem precedentes de adversários políticos e autoridades ao ex-juiz da Lava Jato, atual senador Sergio Moro (União).
“Depois de todo aquele movimento de protestos contra a corrupção e a esquerda, vem uma série de derrotas. Problemas dentro do governo Bolsonaro, áudios vazados contra a Lava Jato, soltura do Lula, o sucesso de Lula nas eleições, os atos de 8 de janeiro... Há, então, uma frustração com a política em geral que desmobiliza mais essa parte da direita que dialoga com o MBL, gerando dificuldades para uma retomada mais concreta”, diz o cientista político.
Burocracia excessiva pode dificultar criação de partido
Atualmente o MBL se prepara para iniciar a longa empreitada para viabilizar a criação de uma legenda. “Nosso planejamento é para o partido disputar as eleições de 2026. Estamos estudando e realizando testes para otimizar o processo quando ele for iniciado. Trabalharemos para ter candidatura ao Executivo no estado de São Paulo e no Brasil”, afirma o coordenador nacional Renato Battista.
No entanto, a criação de um partido pode ser algo bastante desafiador para o momento. O próprio Jair Bolsonaro tentou no passado a criação do Aliança pelo Brasil, mas o projeto sucumbiu diante de vários empecilhos no reconhecimento das assinaturas. Coordenadores da iniciativa estimaram que mais de um milhão de assinaturas haviam sido coletadas, mas menos de 200 mil foram reconhecidas nos cartórios eleitorais – era exigido um mínimo de 492 mil.
Para Sperandio, mesmo que a construção da legenda não se viabilize, a iniciativa pode trazer relevância para o grupo no debate público. No curto prazo, ele aponta que as eleições municipais de 2024 mostrarão o tamanho da força do movimento, que nos últimos anos vem desenvolvendo ações de formação de lideranças locais para atuarem em pautas municipais. “Focar mais em políticas locais para se tornar um movimento de base e descentralização pode trazer bons resultados. As eleições de 2024 serão o grande teste para esse movimento de formação de lideranças”, diz o analista político.
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