Um recente abaixo-assinado que contou com a participação de aproximadamente três mil assinantes, dentre professores, escritores, pais e responsáveis por alunos, intitulado “Não ao retrocesso nas políticas públicas do livro e da leitura”, questiona o programa Conta Pra Mim, iniciativa que integra a Política Nacional de Alfabetização, do Ministério da Educação (MEC).
Apesar de o conteúdo do abaixo-assinado apontar críticas variadas à atuação do governo federal e do MEC, o principal alvo é a proposta de incentivo à “literacia familiar” – conjunto de práticas e experiências relacionadas à linguagem, à leitura e à escrita, a serem vivenciadas pelas crianças com a ajuda de seus pais ou cuidadores, que segue evidências científicas sobre alfabetização. Mais especificamente, as críticas miram alguns dos livros que fazem parte da coleção de histórias infantis Conta Pra Mim, uma das estratégias de alfabetização do programa que leva o mesmo nome, lançada em agosto deste ano.
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Os livros em questão narram contos de fada clássicos, como “João e Maria”, “O Flautista de Hamelin”, “Branca de Neve e os Sete Anões” e “Chapeuzinho Vermelho”, mas trazem adaptações nas histórias. De acordo com o grupo responsável pelo abaixo-assinado, foram suprimidos trechos considerados elementos-chave das narrativas.
Na história de “João e Maria”, feita pelos irmãos Grimm, por exemplo, que é uma das mais tradicionais, a madrasta do casal de irmãos decide abandoná-los em uma floresta. Já na versão adaptada pelo MEC, as crianças gostavam de passear na floresta para colher flores e, por isso, acabaram se perdendo. A cruel madrasta também não existe, e dá lugar à mãe que trata os filhos carinhosamente.
Nas versões mais conhecidas do conto “O flautista de Hamelin”, após uma invasão de ratos na cidade, o flautista passa a tocar seu instrumento e leva os animais para fora de Hamelin. Mas, sem receber o pagamento que havia sido prometido por ter livrado a cidade dos roedores, o músico decide tocar novamente a flauta para hipnotizar todas as crianças da cidade e levá-las para longe de seus pais. Na narrativa do MEC, não há o encantamento das crianças. Após o flautista ameaçar trazer novamente os ratos à cidade, o pagamento é feito e o problema se resolve.
Por outro lado, há outras intervenções em clássicos como “Chapeuzinho Vermelho”, em que ao invés de o lobo ser morto pelo caçador, o animal morre afogado após cair no rio. Já em “Branca de Neve e os Sete Anões”, não há menção ao beijo do príncipe.
Além das adaptações nas histórias, o grupo responsável pelo abaixo-assinado contesta os contos selecionados para integrar a coleção: “Nos livros de literatura, a criança encontra aberturas diversas para compreender o mundo, que é grande e complexo. Esse programa do atual governo decide privilegiar narrativas que estabelecem verdades prontas e fechadas ao invés de proporcionar um repertório que contemple os conflitos, os desejos, os medos, as alegrias e os sonhos humanos, com convites para caminhos plurais”, cita o documento.
O que dizem os especialistas
O cronista e articulista Eduardo Affonso explica que adaptações em contos de fadas clássicos são bastante comuns, uma vez que esses contos não são autorais. “Os irmãos Grimm fizeram isso, Jean de La Fontaine, Walt Disney, Monteiro Lobato e vários outros”. Affonso observa que os motivos para essas adaptações podem estar relacionados à adequação da obra à faixa etária do público destinado, ao ajuste à mentalidade da época em que determinada história será republicada ou até mesmo por questões ideológicas.
“Há adaptações que não respondem às mudanças de público ou época, mas têm a intenção de gerar mudanças de mentalidade. Na esquerda o mais comum é o politicamente correto, que é higienizar a literatura e tirar o que possa ser, por exemplo, depreciativo a mulheres ou minorias. Do lado da direita, pode ser para moralizar, tirando o que possa ser considerado como imoral”, diz.
Cláudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da FGV, não enxerga as releituras como algo negativo, e também lembra que é comum haver diferentes versões de um mesmo conto. “Releituras de contos infantis são possíveis. Não há autores criadores de algumas dessas obras clássicas. São contos que foram transformados em livros infantis por alguns autores, mas que circulavam nas sociedades”.
Claudia destaca também que a iniciativa do programa de alfabetização é positiva, principalmente no contexto da pandemia, em que um grande número de crianças, em especial as mais vulneráveis, ficaram isoladas em casa sem aulas e sem livros, só recebendo cadernos pedagógicos com algumas atividades.
“Sou crítica a várias coisas relacionadas ao MEC, mas não me lembro de haver materiais como esses à disposição das famílias, que podem acessar os livros digitalmente. São materiais gratuitos que estimulam o interesse e a curiosidade pela leitura desde a educação infantil”, avalia.
Por outro lado, para a escritora e ilustradora de livros infantis Josiane Bibas, que coordena a ONG Freguesia do Livro, as adaptações empobreceram as histórias. “São contos de fadas riquíssimos que trazem personagens e questionamentos muito interessantes. Quando você tira toda essa riqueza que o conto trazia, esses sentimentos, essas dores, está tirando também o simbolismo que essas histórias trazem e que fazem muito bem para vários aspectos da vida dessas crianças”.
Para ela, faltou ao MEC discutir todo o conjunto com educadores. “Era preciso ter refletido de modo mais amplo a produção desses materiais, ter envolvido mais pessoas com propriedade quanto à literatura infanto-juvenil”, pontua.
O que diz o MEC
De acordo com nota enviada pelo MEC à Gazeta do Povo, o ministério afirma que: “A maioria dos títulos decorre de adaptações de obras em domínio público. É um erro imputar aos irmãos Grimm a originalidade dos contos. O que esses autores fizeram foi conceber versões de narrativas da tradição do povo alemão. O caráter de domínio público faz com que essa seja uma prática salutar, já conduzida, em outros países, por ícones literários como Ítalo Calvino. O grande escritor defendia a adaptação feita sobre as versões dos irmãos Grimm, dada a violência que as caracterizava”.
O secretário de Alfabetização do MEC, Carlos Nadalim, declara que não existe uma versão original dos contos de fadas. “Isso é uma narrativa que precisa ser desconstruída. Em todas as histórias dos contos de fadas, o que temos são versões dessas histórias”, observa. “A versão de ‘Chapeuzinho Vermelho’ feita por Charles Perrault termina com o lobo devorando a menina. Já a versão dos irmãos Grimm termina com o caçador entrando em cena e tem desfecho positivo. Quem escreveu a versão original? Há versões diversas. Essas obras, além de estarem em domínio público, não possuem autoria determinada. Então não faz sentido afirmar que mudamos um original”, pontua o secretário.
Quanto às adaptações e a seleção dos contos, William Ferreira da Cunha, diretor de Alfabetização Baseada em Evidências, da Secretaria de Alfabetização (SEALF), ressalta que o objetivo principal com a produção dos livros foi tornar a coleção adequada ao público-alvo, que são crianças de zero a cinco anos. “Queremos que o material seja realmente usado por todos, pois sabemos dos diversos benefícios cognitivos envolvidos”.
O secretário de alfabetização também afirma que o programa Conta pra Mim foi avaliado pelo principais especialistas internacionais sobre literacia familiar e que pesquisadores dos Estados Unidos, de Luxemburgo e do Brasil foram consultados. Para criar a coleção, o MEC afirma que lançou mão de um acordo de cooperação internacional com a Unesco e abriu uma chamada pública para definir a editora responsável pelos escritores e ilustradores. A contratação da editora para a criação dos 40 títulos infantis custou R$ 171 mil.
Atualmente, todos os livros que integram a coleção Conta Pra Mim estão disponíveis gratuitamente nas versões digital, para imprimir e para colorir. Para o ano que vem, o MEC irá imprimir alguns desses títulos para distribuir a aproximadamente 390 mil famílias em condição de vulnerabilidade socioeconômica que são beneficiárias do Programa Criança Feliz, do Ministério da Cidadania. Os custos da impressão e distribuição estão em licitação no Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
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