Terapias hormonais em crianças e adolescentes podem oferecer riscos irreversíveis à saúde| Foto: Pixabay
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Faz pouco mais de dois meses que o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou uma nova resolução para orientar médicos que atendem pacientes com "incongruência de gênero", termo atualmente usado pela medicina para definir pessoas que não aceitam o sexo de nascimento.

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A Resolução 2.265/2019 diminuiu de 21 para 18 anos a idade para se fazer a cirurgia de mudança de sexo; autorizou o bloqueio de puberdade em crianças que digam se sentir no corpo errado e já estejam na faixa dos 10 anos, quando começam as mudanças mais acentuadas de cada sexo; e liberou a terapia hormonal cruzada a partir dos 16 anos para que, ainda na adolescência, meninos comecem a adquirir características femininas e vice-versa.

A resolução se opõe ao que diz a portaria do Ministério da Saúde (portaria nº 2.803/2013) sobre "readequação sexual no Processo Transexualizador" pelo SUS, que só autoriza a cirurgia para maiores de 21 anos e hormonioterapia após os 18 anos.

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Desde que foi publicado no Diário Oficial da União, em 9 de janeiro, o documento vem gerando muita polêmica e pedidos públicos para que o CFM volte atrás e revogue a norma. Uma carta aberta foi publicada nas redes sociais já na semana seguinte à publicação da resolução do CFM. Nela um grupo de médicos traz um abaixo-assinado online pedindo a revogação da resolução e faz uma série de denúncias.

Segundo a carta, "novas pesquisas de acompanhamento de longo prazo vêm mostrando efeitos adversos na saúde mental com alto índice de suicídio na população que passa pela cirurgia de reatribuição de sexo." Quanto às terapias de bloqueio hormonal em crianças e à hormonioterapia cruzada em adolescentes, os médicos contrários à resolução alegam que na infância e adolescência ainda não se tem maturidade cerebral e emocional para a tomada de decisões de grande impacto sobre a saúde. E apresentam um dado estarrecedor.

"Cerca de 80% a 95% das crianças com disforia de gênero aceitam seu sexo biológico no final da adolescência, sendo um indicativo de que a melhor escolha terapêutica em muitos casos é a não invasiva."

Carta aberta ao CFM publicada na página do Facebook Bioética e conservadorismo

Outro questionamento feito por médicos é ético. "O bloqueio da puberdade é feito com a mesma medicação usada para castrar quimicamente pedófilos em países em que isso é permitido. No Brasil castrar quimicamente um pedófilo é inconstitucional, pois fere a sua dignidade humana. Em crianças púberes, não fere a sua dignidade humana? Elas podem ser castradas e os pedófilos não?", pergunta a psiquiatra gaúcha Akemi Shiba num artigo sobre tratamento de afirmação de gênero publicado recentemente.

Até dentro do próprio Conselho Federal de Medicina houve contestações à Resolução 2.265/2019. Doze dos 28 atuais conselheiros pediram expressamente a revogação do novo conjunto de normas, aprovado na gestão anterior. Eles alegam que, além das questões apontadas acima, a resolução foi aprovada sem consulta aberta aos profissionais da medicina, como é de praxe. Eles próprios dizem que sequer sabiam da discussão sobre o tema, que foi analisado e teve as normas reformuladas no ano passado, embora tenham sido publicadas apenas este ano, já na gestão atual.

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“Era férias, eu estava inclusive viajando. Acordei com dezenas, centenas de mensagens de médicos dizendo que eu tinha aprovado o 'negócio trans' e eu não sabia nem o que estava acontecendo.”

Raphael Câmara, ginecologista e obstetra, representante do RJ no CFM (gestão 2019-2024)

No começo de março foi a vez de uma deputada federal, Chris Tonietto (PSL-RJ), apresentar um Projeto de Decreto Legislativo (PDL 19/20) que suspende a resolução do Conselho Federal de Medicina.

Em entrevista à Gazeta do Povo, a deputada explicou por que quer anular no Congresso a 'carta branca' dada pelo CFM aos médicos para fazerem terapia hormonal em crianças e adolescentes que dizem se sentir no corpo errado. "Ao diminuir a idade para início do tratamento para mudança de sexo, a resolução do CFM afeta diretamente a vida de quem ainda não tem plena capacidade para discernir sobre uma transformação que é irreversível. Os efeitos colaterais são graves e reais", diz Chris Tonietto.

Ela classifica a nova norma como "extremamente irresponsável, imprudente e temerária" e alega que há um "número alarmante de casos em que se demonstra arrependimento de pacientes, até mesmo adultos, que passaram por cirurgias de redesignação e, após algum tempo, buscaram reverter o procedimento, sem sucesso, na maioria das vezes."

Falta de transparência

Os atuais conselheiros contrários à norma alegam que quando o Conselho Federal de Medicina publicou e divulgou a resolução, em 9 de janeiro, a comunidade médica foi pega de surpresa. Parte dos 28 conselheiros do CFM diz que sequer tinha ideia do que era aquela resolução, quando ela foi publicada no diário oficial e divulgada numa coletiva de imprensa por um médico que nem estava mais no órgão.

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O representante do Rio de Janeiro no CFM, o ginecologista e obstetra Raphael Câmara foi um dos 12 conselheiros que assinaram o pedido de revogação da resolução, entregue ao presidente do órgão, Mauro Ribeiro, na primeira reunião do Conselho este ano.

"Eles [representantes da gestão anterior do CFM] disseram que abriram a discussão durante dois anos, ouviram todo mundo, não sei. Sinceramente nunca soube dessa discussão, mas não tenho como saber se realmente houve. Pelo menos no corpo da resolução há uma primazia de instituições que lidam com transgêneros", desabafa.

"Tem algumas resoluções, como a de telemedicina, que eles abriram para consulta para os médicos mandarem sugestões, tanto que se olhar na [resolução] de telemedicina e na de propaganda médica também, está lá: chamamento aos médicos para mandarem sugestões. Nessa, não foi feito isso até onde eu sei."

Histórico da resolução CFM n° 2.265/2019

A polêmica resolução 2.265 foi votada e aprovada por unanimidade em 20 de setembro de 2019, a dez dias do fim do mandato da gestão anterior do CFM. Dia 1° de outubro assumiram os 28 representantes dos estados e do Distrito Federal eleitos para o novo mandato, que só termina em 2024.

Muitos já eram da gestão anterior e foram escolhidos de novo para continuar representando os médicos de seus estados no Conselho. O psiquiatra Leonardo Sérvio Luz, relator do polêmico documento e representante dos médicos do Piauí até então, não está entre os reeleitos, mas esteve presente na entrevista coletiva em que as novas normas foram divulgadas para a imprensa, três meses depois de aprovadas e de ele ter deixado o cargo.

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O CFM esperou de setembro até janeiro para publicar a resolução no diário oficial, de acordo com Câmara, sem fazer esclarecimentos internos sobre o que estava por vir. Por isso, segundo ele, a surpresa dos atuais conselheiros, que começaram a ser cobrados por colegas psiquiatras, endocrinologistas e outros profissionais que atendem crianças e adolescentes com transtornos psicológicos quanto ao seu sexo de nascimento e passaram a ser pressionados a começar as terapias hormonais.

"Isso caiu no nosso colo, todo mundo achou que a gente tinha aprovado isso. A gente, inclusive, soube pela imprensa.”

Raphael Câmara, ginecologista e obstetra, representante do RJ no CFM (gestão 2019-2024)

O que diz o CFM

Na entrevista coletiva de janeiro, em que divulgaram as novas normas, o relator da resolução, psiquiatra Leonardo Sérvio Luz, e o vice-presidente do CFM, pediatra Donizetti Giamberardino Filho, disseram que o assunto foi discutido ao longo de dois anos, antes de ser votado e aprovado.

O texto da resolução revela, no último parágrafo, quem participou das discussões: representantes do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Psicologia, do Conselho Federal de Serviço Social, da Articulação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), do Instituto Brasileiro de Transmasculinidades (Ibrat), da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans Brasil), do Fórum Nacional de Pessoas Trans Negras e Negros (Fonatrans), além de pais de crianças e adolescentes transexuais. Não há médicos na lista.

Diante da reclamação de parte dos atuais conselheiros, que pediram a revogação das normas recém-publicadas, o CFM aceitou reabrir a discussão. Ouviu primeiro o psiquiatra Alexandre Saadeh, favorável às terapias hormonais em crianças e adolescentes e à cirurgia de mudança de sexo a partir dos 18 anos.

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O médico é coordenador do Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (AMTIGOS) do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP), primeiro do país a atender crianças e adolescentes transexuais. Desde 2011 menores de idade que dizem não aceitar o sexo de nascimento já são submetidos a terapias hormonais no ambulatório, de forma experimental. O psiquiatra disse aos conselheiros do CFM nunca ter recebido qualquer relato de problemas sérios com os pacientes que atendeu.

O obstetra Raphael Câmara, conselheiro do RJ, também foi ouvido. Ele apresentou diversos estudos internacionais que mostram consequências negativas de terapias hormonais e cirurgias para mudança de sexo. Um deles revela o que aconteceu na Suécia, primeiro país a liberar terapia hormonal e cirurgias de redesignação sexual, a partir de 1972.

Seis pesquisadores acompanharam por 30 anos 342 transexuais que se submeteram à cirurgia e outro grupo de pessoas da mesma faixa etária. O estudo mostrou que o número de mortes foi 95% superior nos que mudaram de sexo. O mesmo índice foi constatado para suicídio e problemas psiquiátricos.

Raphael Câmara também afirmou que um terço das cirurgias para mudança de sexo geram complicações sérias, como AVC e trombose. "Todo médico sabe que, eticamente, uma cirurgia que tem uma taxa de complicações de 30% jamais deveria ser feita, só isso deveria ser motivo para impedimento. Parece que todas as regras de bioética somem quando se fala em trans."

Na apresentação para os demais conselheiros do CFM o médico exibiu dois vídeos: o depoimento de uma pessoa transexual arrependida de ter feito a cirurgia, lamentando que é irreversível; e o parecer da jurista Janaína Paschoal. Ela já foi professora de bioética na USP e atualmente, como deputada estadual em São Paulo, luta para impedir que um projeto de lei semelhante (e anterior à resolução do CFM), da deputada estadual Erica Malunguinho (PSOL), seja aprovado na Assembleia Legislativa.

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Janaína Paschoal afirma que a resolução do CFM é uma norma ética e não tem força maior que a de leis, mas infringe, por exemplo, a lei federal do Planejamento Familiar (Lei nº 9.263/1996), que proíbe a esterilização de menores de 21 anos e coloca uma série de exigências para permitir vasectomia ou laqueadura até em pessoas que, nessa idade, já têm filhos.

"Se uma pessoa adulta, com filho, tem dificuldade para se esterilizar, como é que pode você dar hormônio para uma criança de dez anos ou tirar o aparelho reprodutor de um menino de 18 anos?"

Janaína Paschoal, jurista e deputada estadual em São Paulo (PSL)

No vídeo, falando diretamente aos conselheiros (veja aqui), a deputada disse que o CFM aparentemente tomou uma decisão apressada ao aprovar a nova resolução para atender a interesses de alguns grupos isolados. “Não estou falando da comunidade trans, mas grupos que desenvolvem tratamentos experimentais já há muito tempo, apesar de as normas éticas proibirem. Esses grupos vinham pressionando [o Conselho] para conseguir uma normativa ética que desse cobertura jurídica ao que eles já fazem na prática há muito tempo.”

Um desses grupos seria justamente o AMTIGOS, coordenado pelo psiquiatra defensor da manutenção das normas aprovadas em setembro, que começaram a valer em janeiro a partir da publicação da resolução 2.265/2019 no Diário Oficial da União.

CFM decide manter resolução

As argumentações de Janaína Paschoal e de Raphael Câmara fizeram os conselheiros do CFM admitirem reestudar a resolução 2.265 e, eventualmente, até revisá-la. Mas por 17 votos a 10 eles decidiram que, por enquanto, tudo fica como está.

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A deputada federal Chris Tonietto anunciou que vai pedir uma audiência pública na Câmara Federal para que médicos mostrem os riscos das terapias hormonais e das cirurgias para mudança de sexo aos integrantes da Comissão de Seguridade Social e Família, onde o PDL 19/20 será analisado agora.

Em São Paulo a deputada estadual Janaína Paschoal apresentou uma emenda ao projeto que tenta transformar em lei o que o CFM aprovou como regra para os médicos (PL 491/19). Janaína Paschoal quer impedir a autorização de terapia hormonal em crianças e adolescentes e a cirurgia de mudança de sexo antes dos 21 anos de idade.

Ela tem falado sobre o assunto na tribuna da Alesp e recebido apoio de outros deputados e até de transexuais que a procuram para relatar casos de pessoas que fizeram a cirurgia de mudança de sexo e precisaram amputar as duas pernas devido a trombose provocada pela hormonioterapia cruzada e pela retirada e dos órgãos reprodutores. O projeto está em tramitação desde abril de 2019, sem prazo para votação.

"A resolução do CFM é irresponsável. A palavra é essa. É de uma irresponsabilidade sem tamanho. O Conselho Federal de Medicina do Brasil vai na contramão do que o mundo está dizendo", disse Janaína Paschoal em entrevista à Gazeta do Povo. "O mais importante desse tema é fugir do debate moral, religioso. A gente está enfrentando uma questão de natureza bioética da maior gravidade."

A deputada lembra que mesmo para uma criança com uma doença rara ser submetida a uma pesquisa é necessário seguir uma série de protocolos: é preciso ficar provado que o que está disponível não é suficiente para tratá-la; que ela e os pais estão conscientes das consequências físicas que aquela pesquisa pode trazer e que os riscos serão menores do que os benefícios que se possa alcançar, entre outras exigências.

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"Tem toda uma filosofia em torno das pesquisas com seres humanos, em especial, os mais vulneráveis", lembra Janaína. "Os hormônios sabidamente têm um impacto, inclusive, cancerígeno. Como é que você aplica esses hormônios em crianças de 9 ou 10 anos, mesmo em adolescentes, sem deixar evidenciado que isso é uma experiência e sem as pessoas serem alertadas dos riscos? A discussão é bioética e de saúde", alerta a deputada.

*A Gazeta do Povo enviou por e-mail ao CFM pedido de esclarecimentos e de entrevista com o presidente do Conselho, mas até o momento não recebeu resposta.