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Judiciário

Medidas adotadas pelo STF contra réus do 8 de janeiro rompem garantias constitucionais

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O ministro Alexandre de Moraes, do STF. (Foto: Rosinei Coutinho/SCO/STF.)

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Ao longo de 2023, a Gazeta do Povo falou sobre os diversos motivos pelos quais o tratamento dado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) aos réus do 8 de janeiro ferem direitos garantidos pela Constituição. Neste dia em que os atentados violentos a edifícios dos Três Poderes completam um ano, relembre algumas das razões pelas quais o remédio que o Judiciário alega usar para restabelecer a democracia está fazendo ruir o Estado de Direito no Brasil.

Condutas não foram individualizadas

A falta de individualização das condutas dos manifestantes é um problema que perpassa todo o processo, desde a prisão até o julgamento dos réus do 8/1.

Como destaca editorial de setembro da Gazeta do Povo, "a individualização da conduta é princípio básico do Direito Penal: significa que uma pessoa só pode ser acusada e julgada pelos crimes concretos que ela tenha cometido, e que precisam ser devidamente descritos na denúncia". A Procuradoria-Geral da República e o Supremo Tribunal Federal têm negligenciado esse princípio.

Responsável pela acusação no julgamento de alguns invasores das sedes dos Três Poderes, o subprocurador-geral da República, Carlos Frederico Santos, afirmou: "O Ministério Público Federal não tem que descrever a conduta de cada um dos executores do ato criminoso, mas o resultado dos atos praticados pela turba, não sendo necessário descrever quem quebrou uma porta, quem danificou uma janela, ou quem danificou uma obra de arte".

A tese da culpa coletiva foi replicada por Alexandre de Moraes, relator do caso, para quem "esses crimes são multitudinários, e em crimes dessa natureza a individualização detalhada das condutas encontra barreiras intransponíveis, pela própria característica coletiva da conduta".

As prisões "de baciada" realizadas após os atentados, sem individualização das condutas, são outro abuso grave nesse sentido. No caso das prisões do 9 de janeiro no Quartel General do Exército, diversos presos alegam que a polícia informou que eles embarcariam no ônibus para serem liberados posteriormente.

Alguns deles ficaram presos por meses, com atrasos injustificados nas audiências de custódia. Nessas audiências, além disso, os juízes foram impedidos de decidir sobre a possibilidade de libertar as pessoas – o que também é inconstitucional.

E, como já relatou a Gazeta do Povo em diversas ocasiões, as violações aos direitos humanos de alguns dos presos foram patentes.

Princípio do ônus da prova foi ignorado

Alguns dos réus foram condenados sem que haja prova de que eles tenham depredado o patrimônio público. Por um malabarismo jurídico do Supremo, o princípio do ônus da prova foi deixado de lado, como relatou em setembro o ex-procurador Deltan Dallagnol, colunista da Gazeta do Povo.

"Um princípio do direito penal democrático é de que o ônus em provar o crime repousa sobre quem faz a acusação. Contudo, o STF empregou, nesses casos, a tese inovadora de que quando há crimes praticados por multidões, 'crimes multitudinários', como em brigas de torcida, não é necessário individualizar a conduta de cada pessoa. Diante da dificuldade probatória, seria aberta uma exceção ao princípio do ônus da prova, a fim de garantir a realização da justiça", explicou.

Mas, no caso do 8 de janeiro, tudo está gravado, como destacou Dallagnol. "A prova é trabalhosa, mas possível. Poderiam ser usadas as imagens para identificar, indivíduo a indivíduo, qual foi o comportamento. O que não dá é para condenar as pessoas a 17 anos de prisão sem que tenha havido, no mínimo, um esforço sério de individualizar as condutas e provas", disse.

STF não tem competência para julgar presos do 8/1

Advogados de réus do 8 de janeiro têm questionado o fato de os julgamentos estarem sendo conduzidos diretamente pelo STF – última instância, onde não há meios para recorrer de eventuais condenações. As defesas apontam que os réus não têm foro privilegiado e que deveriam ser julgados em primeira instância.

À Gazeta do Povo, o advogado constitucionalista André Marsiglia, especializado em liberdades de expressão e de imprensa e membro da Comissão de Liberdade de Imprensa da OAB-SP, explicou em setembro que a competência originária do STF, descrita no artigo 102 da Constituição Federal, não prevê a possibilidade do julgamento dos réus em questão pelo Supremo.

"Alega-se conexão com investigação de réus com prerrogativa de função [foro privilegiado], mas na denúncia não há nada convincente que demonstre conexão entre os fatos e as pessoas. É um erro, e grave, pois regra de competência não pode ser interpretada de forma subjetiva justamente por servir para evitar tribunais de exceção", diz.

Atribuição de golpismo não pode ser genérica

Para alguns dos réus que já foram condenados, não há nem sequer provas de que eles sabiam que haveria invasão aos prédios dos Três Poderes. Para atribuir aos réus crimes como tentativa de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, seriam necessárias provas concretas de que havia um plano e de que eles teriam participado desse plano.

Como afirmou o ministro André Mendonça em um dos julgamentos, "um golpe de Estado demanda atos não só de destituição do poder, mas do estabelecimento de uma nova ordem política institucional". "A perspectiva da atuação deles era criar uma situação de instabilidade institucional, mas qualquer ação de golpe de Estado dependeria de uma atuação de outras forças", disse.

O desembargador aposentado Sebastião Coelho, advogado de um dos réus do 8/1, questionou durante o primeiro julgamento do caso a própria falta de instrumentos adequados para se colocar um golpe em prática. "Alguém trouxe um fuzil para Brasília? Naquele povo que estava ali no dia 8 de janeiro, não houve. Houve impedimento de funcionamento dos poderes? Qual poder deixou de funcionar por conta da ação que houve nesse prédio e demais prédios?", indagou Coelho aos ministros.

O ministro Nunes Marques recordou que não houve nenhum elemento, "por menor que seja, da prática de qualquer ato de violência e grave ameaça contra algum agente político, representantes de um dos poderes da República, nem mesmo servidores". "A verdade é que a depredação dos prédios que são sede dos poderes da República em nenhum momento chegou a ameaçar a autoridade dos dignitários de cada um dos poderes, tampouco o Estado Democrático de Direito", afirmou em seu voto durante um dos julgamentos.

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