Quase um ano após os atos de 8 de janeiro, cerca de 1.300 pessoas seguem em liberdade provisória com determinações que restringem o direito à locomoção, acesso a contas bancárias e uso de redes sociais.
“Essas medidas cautelares impostas pelo ministro Alexandre de Moraes ferem a dignidade humana e configuram tortura”, afirmam os advogados Ezequiel Silveira e Carolina Siebra, da Associação dos Familiares e Vítimas do 8 de Janeiro (Asfav).
Segundo eles, centenas de pessoas não conseguem emprego devido às restrições de horário e localização exigidos para uso da tornozeleira eletrônica, e famílias que dependiam de aposentadoria, por exemplo, estão sem acesso ao benefício. “Tem gente passando fome, e a Asfav acompanha essas pessoas mensalmente com doações que temos recebido”.
Além disso, Silveira afirma que as medidas são “abusivas e inconstitucionais”, porque não têm o objetivo de assegurar a lei penal, evitando que a pessoa fuja ou obstrua a Justiça. “O que acaba ocorrendo é o estigma da sociedade porque normalmente quem usa tornozeleira é bandido”, afirma Carolina Siebra, ao citar que essas pessoas têm sido tratadas como “terroristas e perigosas”, causando intenso sofrimento emocional.
De acordo com dados do Supremo Tribunal Federal (STF), 243 indivíduos foram presos dia 8 de janeiro na praça dos Três Poderes, e 1.927 conduzidos à Academia Nacional de Polícia no dia seguinte, dos quais 1.152 permaneceram presos. Aos poucos, eles começaram a receber liberdade provisória, mediante imposição das medidas cautelares e, segundo dados da Asfav, cerca de 20 permanecem atualmente em regime fechado.
“Ou seja, temos mais de 1.300 homens e mulheres do 8/1 com tornozeleira eletrônica, sem contar a Operação Lesa Pátria”, explica a advogada Carolina Siebra, citando que mais da metade dessas pessoas está cumprindo medidas restritivas há dez meses, pois 680 presos receberam liberdade provisória em meados de fevereiro e março.
Esse longo período, segundo ela, fere uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça, que indica reavaliação do uso da tornozeleira eletrônica a cada 90 dias para presos provisórios e a cada 180 para quem está cumprindo pena. “Isso sem levarmos em consideração o fato de que essas pessoas não deveriam nem ter sido presas”, aponta a advogada, ao citar como exemplo as 1.152 pessoas que estavam em frente ao Quartel-General do Exército, em Brasília.
“A pena dessas pessoas é de menor potencial ofensivo, tanto que receberam possibilidade do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP)”, diz. “Então, não caberia prisão em flagrante naquele dia, mas apenas condução à delegacia para assinatura de termo circunstanciado e liberação”, continua a especialista em Direito Eleitoral com foco em articulação política.
“Apresentação semanal no fórum nem existia no sistema judicial”
Além disso, outra medida imposta aos presos do 8/1 é a apresentação semanal ao juiz da comarca, algo que não é solicitado nem a criminosos de alta periculosidade. “Esse comparecimento ocorre uma vez por mês para os casos mais graves, mas o ministro exigiu apresentação semanal para os presos do 8/1, algo que nem existia no sistema judicial”, informa o advogado criminal Ezequiel Silveira. “São medidas absurdas que ferem o ordenamento jurídico e têm prejudicado muito esses cidadãos”.
O agricultor Sipriano Alves de Oliveira está entre eles. Com tornozeleira eletrônica desde o dia 8 de agosto – após sete meses de prisão –, o morador de São Felix do Xingu, interior do Pará, percorre 300 quilômetros de estrada de chão toda segunda-feira, de moto, para apresentar-se no fórum mais próximo.
“Saio 5h da manhã, preciso pegar balsa, e gasto quase R$ 200, sem almoço, para ir e voltar”, relata o paraense de 47 anos. “Isso sem contar as épocas de chuva em que os rios transbordam e as estradas ficam intrafegáveis”, continua.
Segundo ele, a situação também é um empecilho para conseguir oportunidades de trabalho, já que precisa se ausentar um dia inteiro semanalmente, e depende de diárias na roça para manter sua família. “Tem sido muito difícil e, se não fossem as doações, passaríamos fome”, lamenta o lavrador, que possuía um terreno de dez alqueires na região, mas foi retirado do local pelo governo sob alegação de ser terra indígena.
“A injustiça está sendo muito grande com a gente”, lamentou Sipriano, que nunca teve passagem pela polícia. “Fui preso por me manifestar pacificamente em Brasília carregando uma bandeira e meu cantil de água, e agora o Moraes quer me condenar a 14 anos de prisão”. Ele é um dos 29 presos do 8/1 que começaram a ser julgados na última sexta-feira (15).
As medidas cautelares bloqueiam todas as contas bancárias dos presos do 8/1
Além da obrigatoriedade de apresentarem-se no fórum semanalmente, os presos do 8/1 também tiveram suas contas bancárias bloqueadas, situação que recebeu grande repercussão nesta semana de véspera de Natal após publicação do senador Cleitinho Azevedo (Rep-MG) nas redes sociais.
“Estou aqui com a Cristina, que é uma trabalhadora e está no banco para tirar seu dinheiro e fazer suas compras”, disse no vídeo, ao citar que a mulher que aparece ao seu lado não tem acesso aos seus bens financeiros porque está com a conta bloqueada desde abril deste ano, quando recebeu liberdade provisória após ser presa pelos atos do 8/1.
“E igual ela tem várias pessoas no Brasil. Têm aposentados que precisam receber seu salário de aposentadoria e estão vivendo de favor”, completou, pedindo uma audiência com o ministro Alexandre de Moraes.
O bloqueio das contas também prejudica empresários como um arquiteto de 32 anos do Ceará que fundou uma startup na área de soluções ecológicas para construção civil e precisa da movimentação bancária para manter o negócio ativo.
“Tudo que tenho eu investi nessa empresa e está bloqueado”, afirma o morador do Ceará, que conseguiu, com dificuldade, fechar um contrato para 2024, mas não tem como receber o valor dos serviços que serão prestados. “Não consigo movimentar nada na empresa porque está tudo no meu nome”, lamenta, ao citar ainda os problemas que enfrenta devido à restrição de locomoção.
Os presos do 8/1 têm dificuldades para trabalhar, e não podem ir à igreja
De acordo com o advogado Ezequiel Silveira, isso impossibilita as pessoas se obterem seu sustento, pois muitos atuam em cidades da região e em horários estendidos durante a semana, sábados e domingos. “Acompanhei o caso de uma mulher que trabalha com decoração de eventos, por exemplo, que precisaria de autorização para trabalhar aos finais de semana porque é mãe solteira e tem um filho, mas o ministro não liberou”, conta. “E tenho casos de motoristas, que precisam ir e voltar das cidades da região metropolitana, e também não podem”, completou.
O advogado cita ainda que as restrições de horários e locomoção ferem a liberdade religiosa dessas pessoas, que não podem frequentar cultos. “Essas pessoas precisam pedir autorização para ir à igreja, o que é um absurdo”, aponta, solicitando que as medidas cautelares sejam revistas. “Afinal, o que estamos acompanhando até agora não é justiça”, finaliza.
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