O controle estatal sobre o que pode ou não ser dito nas redes sociais deve se intensificar durante o governo Lula (PT), como prometido pelo petista durante a campanha eleitoral. Além das políticas das próprias plataformas, que impõem certas restrições para alguns tipos de conteúdo, atores dos poderes Judiciário, Executivo e Legislativo avançam na tentativa de criar mecanismos para monitorar, proibir e até criminalizar determinados conteúdos. Fontes ouvidas pela reportagem apontam que as diferentes propostas em andamento, se concretizadas, podem ser usadas politicamente para silenciar vozes contrárias ao governo e suas diretrizes ideológicas e gerar prejuízos diversos à liberdade de expressão.
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As discussões sobre regulamentação das redes sociais tomaram proporção maior após os protestos violentos do dia 8 de janeiro sob a alegação de que teriam sido mobilizados exclusivamente pelas plataformas digitais. Mas a cúpula petista já estudava emplacar, logo no início do governo, uma regulamentação por Medida Provisória, isto é, sem a necessidade de aprovação de lei no Congresso.
Como há resistência no Legislativo e no próprio governo quanto à ideia, parlamentares governistas se articulam para avançar rapidamente com o projeto de lei (PL) 2.630/20, popularmente chamado de “PL das fake news”, que cria regras para a moderação de conteúdo nas plataformas. A proposta, cuja relatoria está com o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP), já foi aprovada pelo Senado e aguarda análise na Câmara dos Deputados.
A Gazeta do Povo já publicou uma série de artigos e editoriais mostrando que os riscos por trás dessa proposta superam os benefícios. "Medidas interessantes como a caça aos robôs e perfis falsos foram misturadas a uma série de previsões de caráter aberto e que dão margem a perseguição e censura com base política e ideológica", explica um dos artigos.
Apesar dos riscos de censura, apontados também por especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo nesta reportagem, a aprovação do projeto é defendida por integrantes do governo Lula sob o argumento de coibir a disseminação de conteúdos que representem ameaças às instituições democráticas.
Um mês após os episódios de vandalismo aos prédios dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro, o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, defendeu o PL da Fake News em uma reunião do Conselho Político de Coalizão. "A orientação do governo é aproveitar ao máximo a iniciativa que já tem do Congresso, aprovado no Senado e que está na Câmara, sob liderança e a relatoria do deputado Orlando Silva, com quem já tive uma conversa”, disse Padilha.
Para avançar com essa matéria, o governo tem promovido reuniões com o autor do projeto de lei, senador Alessandro Vieira (PSDB-SE), e representantes do Ministério da Justiça e Segurança Pública, da Casa Civil, da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Secretaria de Comunicação Social (Secom) para aprimorar a proposta.
Em outra frente, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), encabeça uma comissão na Justiça Eleitoral para criar novas regras para a moderação de conteúdo na internet. No último dia 16, durante o II Encontro Nacional de Comunicação da Justiça Eleitoral, Moraes deu o tom da sua intenção de regular as redes sociais no Brasil ao dizer que as plataformas devem tratar desinformação, discursos de ódio e ataques à democracia com o mesmo rigor com que tratam crimes como pedofilia e racismo.
Em encontro com Lula, em outubro do ano passado, o ministro já havia sinalizado a intenção de criar uma comissão do TSE para enviar propostas ao Congresso com “mecanismos de regulamentação das redes sociais". Recentemente, em evento do grupo empresarial Lide, em Lisboa, Moraes afirmou que a comissão do órgão eleitoral vai enviar propostas de regulamentação das redes sociais ao Congresso.
As sugestões de propostas devem ser inspiradas nas medidas que o ministro adotou na Corte Eleitoral durante as eleições de 2022 – que são alvo de críticas diversas – para, segundo ele, dar mais agilidade ao combate a “notícias fraudulentas” e ao “discurso de ódio”, tarefa que já havia se tornado a principal bandeira de Moraes como relator do chamado "inquéritos das fake news" no STF, que investiga supostas ofensas e ameaças aos colegas.
Nesta semana, em um fórum da Unesco com foco em debater o combate à desinformação, Lula e o ministro do STF Luís Roberto Barroso, convidados para falar, defenderam maior controle estatal sobre o discurso na internet.
Especialistas questionam medidas
Na avaliação do advogado Giuliano Miotto, presidente do Instituto Liberdade e Justiça, os discursos do atual governo estão alinhados ao de membros de outros poderes no sentido de aumentar o controle prévio e abusivo sobre a opinião pública e sobre a imprensa. "Isso tem o óbvio objetivo de blindar essa classe política de críticas ou questionamentos. Tudo indica que virão tempos sombrios para a liberdade de expressão", explicou.
Para Miotto, o Brasil não precisa de mais leis para controle de redes sociais. Segundo ele, medidas nesse sentido não são benéficas à sociedade. "As leis que já existem, bem como os sistemas de controle das próprias plataformas, já fazem esse papel de controle. Qualquer lei que venha a ser criada de agora em diante e dentro do atual cenário só vai servir para aumentar o controle governamental indevido sobre a liberdade de expressão e para criar um ambiente de proteção ao sistema político", explicou.
Para o comunicador social Pedro Franco, especialista em polarização política e liberdade de expressão, a tentativa de regular as redes sociais é uma forma equivocada de tentar recuperar a confiança pública nas instituições brasileiras. “Estão tentando censurar o que eles chamam de 'discurso golpista'. Mas não é proibindo um discurso que vão reaver a confiança nas instituições. Assim vão provocar mais desconfiança. A melhor estratégia é argumentar contra o que acham que está errado”, explica.
Para Franco, a estratégia do atual governo, de parlamentares governistas e do ministro Alexandre de Moraes, demonstram despreparo. “Vai corroer ainda mais a nossa democracia”, diz.
No sentido oposto, Rodolfo Assis, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional e membro do grupo de pesquisa sobre Liberdade de Expressão no Brasil na PUC-Rio, vê a regulação das plataformas digitais como algo natural e que já vem sendo debatido por outros países, “inclusive nas democracias liberais”.
“O movimento de regulação é decorrente, entre outros aspectos, de uma latente insegurança jurídica em relação a uma nova tecnologia, que propicia inúmeras variáveis e relações jurídicas diferentes – plataformas entre si, plataformas e governos/autoridades, plataformas e usuários etc.). Tendo em vista tal variação, as autoridades têm tido dificuldades de produzir respostas razoavelmente consistentes”, afirma.
De acordo com Assis, a variação de condutas e regras entre as plataformas dificulta a tomada de decisões judiciais, por isso “a legislação pode funcionar como um mecanismo que estabelece padrões, o que tende a aumentar a previsibilidade e a segurança das partes envolvidas”.
Tentativas de controle do discurso são "porta aberta para a censura”
Antes de ser reeleito presidente, Lula disse em diversas ocasiões que uma das prioridades de sua eventual gestão seria justamente aprovar um projeto de regulação da mídia. Logo no início do atual mandato, o petista criou o 'Ministério da Verdade' – como vêm sendo chamados os novos órgãos da União criados sob a alegação da defesa da democracia e da liberdade de expressão.
Os decretos que estabeleceram a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia e o Departamento de Promoção da Liberdade de Expressão – dentro da Advocacia Geral da União (AGU) e da Secretaria de Comunicação Social (Secom) da Presidência da República, respectivamente – são vagos em relação às atribuições desses dois órgãos. A depender do teor da regulação da mídia que o PT pretenda avançar, há o risco de que eles possam servir como veículos de uma censura instituída pelo Estado.
Em uma entrevista para a revistaVeja na última sexta-feira (17), o chefe da Secretaria de Comunicação do governo, Paulo Pimenta, chegou a dizer que as plataformas digitais devem ser responsabilizadas pela difusão de conteúdos criminosos. Ele destacou, no entanto, que o governo ainda não tem uma opinião conclusiva sobre o assunto.
“Acho que a ideia de que as plataformas não têm responsabilidade sobre o conteúdo que veiculam não se sustenta. Esse é um conceito derrotado pela vida real. Basta ver o que aconteceu aqui no processo eleitoral, quando vimos o Judiciário de certa forma legislando, normatizando mecanismos para proteger a democracia”, explicou Pimenta.
Pimenta discorda de que tenha havido violação da liberdade de expressão nas ocasiões em que o Judiciário determinou remoção de “conteúdos antidemocráticos”. Segundo ele, “o conceito de liberdade de expressão é importante, mas relativizado por outro, que é o direito coletivo, o direito da sociedade, da democracia”.
Outros ministros de Lula também se posicionaram sobre a necessidade de impor um controle sobre o que pode ou não ser publicado na internet. Em um encontro com empresários, no dia 15 de fevereiro, o ministro da Justiça, Flávio Dino, defendeu a regulação das redes sociais com o intuito de evitar práticas criminosas. “Nós estamos propondo um debate sério sobre isso, que é alinhado com as melhores práticas internacionais, em que não há obviamente nenhum cerceamento à liberdade de expressão, mas há a compreensão de que liberdade de expressão absoluta não existe”, declarou.
No entanto, para o jurista Fabricio Rebelo, responsável pelo Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), a tentativa do governo petista de controlar as redes sociais é uma porta aberta para a censura e que no sistema de leis brasileiro já existem meios suficientes para responsabilizar criminal e civilmente indivíduos que façam mal uso da liberdade de expressão.
“Redes sociais são apenas um meio de comunicação, e as regras para quem comete crimes em qualquer um deles já existem em nossa legislação. A ideia de uma lei para controlar isso é apenas uma porta aberta para a censura, exatamente como temos visto em algumas decisões judiciais, que extrapolam a restrição de conteúdo ilegal e avançam sobre as pessoas, banindo os seus perfis. Isso é censura”, explica.
Miotto reforça que o limite da liberdade de expressão para evitar eventuais censuras deve ser o bom senso e aquilo que já se tem definido como crime pela legislação do País. "Por exemplo, uma pessoa deve ter o direito, o mais amplo possível, de criticar um determinado comportamento, movimento ou ideologia desde que não cometa crime de difamação, injúria ou calúnia. E, ainda que se cometa um desses crimes, mesmo assim a pessoa deve ter o direito de livre expressão, mas com a devida possibilidade de que o ofendido possa acionar os meios legais cabíveis para cessar a ofensa ou ser ressarcido por algum dano efetivamente causado", explica.
O advogado, por fim, destaca que todas as medidas cabíveis para coibir a desinformação ou ofensa estão na Constituição Federal. "Impor qualquer outro tipo de limitação, como a censura prévia ou a possibilidade de um juiz interferir no direito de livre expressão de forma geral e abstrata, pode gerar um estado ditatorial", declara.
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