O Instituto Médico Legal (IML) recebe, em média, um feto resultante de aborto induzido a cada mês em Curitiba. O número, aparentemente inexpressivo, mascara as estatísticas oficiais porque esconde uma prática clandestina difícil de quantificar. A passagem pelo IML é a única maneira de se tomar conhecimento desses casos. Os fetos abortados geralmente são descartados em terrenos baldios, em banheiros públicos, no lixo, na rua, e nem todos que os encontram avisam a polícia, por medo ou desinteresse. E a prática ilegal ainda é favorecida pela popularização de abortivos contrabandeados em grande quantidade do Paraguai.
A polícia reconhece a dificuldade de chegar aos autores do crime. "É bastante difícil porque normalmente a pessoa que comete aborto não vai descartar na lixeira da residência nem no bairro onde mora. Faz isso em local distante", diz o titular da Delegacia de Homicídios, Hamilton da Paz. Abre-se inquérito para tentar descobrir quem descartou o feto e dá-se a mesma importância que aos demais crimes. Interrogam-se pessoas que moram ou transitam perto do local em que o feto foi encontrado, mas surge novo obstáculo. "A pessoa joga saco plástico e se alguém olha, nem enxerga. Algo tão banal jogar algo no lixo", diz.
É difícil elucidar um caso assim, mas não impossível. Segundo o delegado, nos casos elucidados aconteceu de denúncias chegarem à polícia por causa de notícias de que um feto foi encontrado e da percepção de que alguma gestante de repente não está mais grávida. Se comprovado o abordo, a pena prevista no Código Penal é de detenção de 1 a 3 anos. A lei, porém, permite o aborto quando há risco de morte para a mulher e gravidez resultante de estupro. Na percepção do delegado, são poucos os casos de aborto que chegam à delegacia.
Necropsia
A média de idade dos fetos encaminhados ao IML é de mais de três meses de gestação. Até o terceiro mês, os fetos de abortos induzidos são decompostos, se misturam com pedaços de placenta e sangue. O diretor do necrotério do IML em Curitiba, Antônio Caccia, diz que é feita necropsia nos fetos acima de 500 gramas. O exame poderá indicar se a mãe tomou alguma droga, mas, mesmo assim, ele afirma que é difícil obter as informações. "Não compete ao IML saber se foi legal ou ilegal. IML faz diagnóstico da causa morte", explica.
Os números oficiais de abortos induzidos poderiam ser mais significativos se não houvesse medo ou desinteresse de quem mais tem possibilidade de encontrar os vestígios. Segundo o presidente da Cooperativa de Catadores de Curitiba, Região Metropolitana e Litoral, Valdomiro Ferreira da Luz, muitos casos não chegam ao IML porque os catadores encontram fetos mas dificilmente denunciam. "O catador não chama a polícia. Deixa no lugar, com medo de ir preso", afirma. "A polícia não fica sabendo, principalmente da boca de catador", conclui.
Medicina
Na área médica também são poucos os casos de profissionais punidos por aborto clandestino. A ginecologista Raquele Rotta Burkiewicz, primeira corregedora do Conselho Regional de Medicina do Paraná, lembra de dois casos em 10 anos. Segundo ela, é difícil pegar o médico em flagrante. São poucas denúncias e as clínicas clandestinas se protegem com câmeras de segurança na sala de espera. Contudo, em setembro o médico Rafael Pedral Sampaio Cunha foi preso acusado de manter uma clínica de aborto havia uma década no centro de Curitiba, fechada pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) após dois meses de investigações.
Já a gestante que pretende fazer aborto nem pensa na punição. "A mulher quer resolver a vida dela sem a criança, que está determinada, vai fazer de qualquer forma, sem pensar nas questões legais", diz Raquele. "Ela entra em desespero, não vê outra saída. A parte criminal nem passa pela cabeça dela." A opinião da médica é que, pela facilidade que as mulheres têm de métodos anticoncepcionais, o número de abortos diminuiu. Já para o chefe do Departamento de Tocoginecologia do Hospital de Clínicas da UFPR, Edson Gomes Tristão, que trabalha há 30 anos no setor, os abortos continuam acontecendo, mas os casos com complicações graves diminuíram.
As hipóteses são que mais médicos estejam fazendo abortos em clínicas clandestinas e por causa do aumento no uso do medicamento Cytotec, vendido ilegamente (leia mais nessa página). "A paciente antes chegava ao hospital mais debilitada. Era negócio mais traumático", afirma. "Antes, imagina-se que fosse com agulha, objeto. Havia casos muito graves e a gente acha que possivelmente a resposta seja essa", diz.
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