Livro de Paulo Koehler sobre Didi Caillet traz à baila o frisson causado por paranaense nos dois meses em que reinou no Rio de Janeiro
No filme Meia-noite em Paris, último trabalho de Woody Allen em cartaz nos cinemas , um roteirista americano encontra uma "fenda do tempo" e se transporta para os "anos loucos" os anos 1920 , aqueles em que "Paris era uma festa". Em seu delírio, depara-se com Scott Fitzgerald, Picasso, Hemingway, Cole Porter, Buñuel... E leva o público a questionar de que barro é feita a memória.
A curitibana Didi Caillet, trazida à baila novamente esta semana, com o lançamento do livro Didi Caillet a musa dos paranistas (Ed. Gramofone), organizado pelo psicanalista, fotógrafo e professor aposentado da UFPR Paulo Koehler, é uma personagem dos anos loucos creiam.
Sua vida é uma deliciosa crônica de época, ao som do charleston, pontuada pelos apitaços das máquinas a vapor e por mulheres de nome Yayá decana do Grêmio das Violetas. Em 1929, Maria Delphine a Didi, filha de ervateiros ricos elegeu-se miss Curitiba, miss Paraná e ficou com a faixa de segundo lugar no, então, Senhorita Brasil.
Nada que brade os céus, não fosse Didi, a vice, personagem digna de figurar em Meia-noite em Paris. A naturalidade com que conviveria com Kiki de Montparmasse, Gertrude Stein ou Josephine Baker para citar três mulheres da época chega a ser surreal, posto que foi guria criada nesses distantes pinheirais. Eis o que torna sua história tão atraente. Às falas.
Há uma Didi palatável para boa parte dos paranaenses. Sabe-se dela pelo filme de Arthur Rogge A chegada de Didi Caillet em Curitiba, um dos documentários fundadores da cinematografia local. O que se vê ali é uma capital em festa, com sua gente às ruas para receber a representante ilustre. Mas são os jornais da época os do Rio de Janeiro e de São Paulo, precisamente, e um texto de Jurandyr Manfredini na Gazeta do Povo que dão contas de uma outra Didi, cuja identidade déco seus conterrâneos custaram a perceber.
É sobre essa Didi a dos jornais, não a do filme que se debruça Paulo Koehler. No livro de colagens, uma sua homenagem ao escritor Valêncio Xavier, ele compila notícia por notícia dada pelos periódicos nos dois meses em que a curitibana com rostinho de camafeu circulou pelo então Distrito Federal, às voltas com o concurso e com a intelectuália local. Causa impressão tanta fuzarca tem-se a impressão de ainda ver as câmaras em disparo. O volume de matérias é estrondoso. E quer-se entender por que a representante do Paraná monopolizou a imprensa com tanto afinco.
Resta traçar hipóteses. A mais rasteira é que no ano que antecedeu à Revolução de 1930 não havia muito o que fazer, permitindo jornalistas se ocuparem de candidatas a rainhas de beleza vale dizer, todas com pinta de debutantes, com exceção de uma. A mais sociológica é a de Nestor Victor, que numa das publicações sugere que o frisson causado pelo "certamen" de 1929 era um escapismo: o governo Washington Luís ruía e ainda por cima havia a febre amarela. Melhor flanar.
Uma mais machadiana diria que se formou uma histeria coletiva, digna de O alienista. Uma hipótese jornalística, no entanto, informaria que nenhuma mentira perduraria tanto. Haja vista que os dois meses de fama da srta. Caillet se estenderam por três anos, tempo em que o rosto de "Miss Inteligência", seu apelido, dominou os diários fluminenses.
Didi, em resumo, mereceu todas as páginas e páginas dedicadas a ela porque era uma legítima representante dos anos loucos. Falava línguas, vestia-se à francesa, tinha posturas de liberal, escrevia e declamava poesias uma diseuse, chegando a gravar um disco pela Odeon. Impossível resumir todas as suas peripécias, porque em Didi tudo ganhava ênfase: diria um Nash, defendia o voto feminino, visitava presídios, dava coletivas.
É célebre, por exemplo, seu encontro com os modernistas de São Paulo, quando estava no caminho de volta para casa. Houve quem a desdenhasse, mas ela pronto mostrou ao grupo de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade que estava pronta para ser devorada pelos antropófagos.
E o foi, a seu modo. A Didi que, depois do concurso, lançou-se à literatura virou também marca de cambraia, de Leite de Rosas, de cocktail e garota propaganda do Matte Leão, de cuja família, a partir de 1933, viria a fazer parte. Uma das últimas imagens públicas que se tem dela é vestida de índia cherokee, na capa do The New York Times. Tupy or not tupy, diria Oswald.
Didi é apontada pelos ianques como a rainha dos estudantes do Brasil. Pelo que tudo indica, era de fato. Foram os jovens que a aclamaram em carro aberto, pelas ruas do Rio, como símbolo da mulher brasileira. A contar por quem era Didi, as brasileiras deveriam ser bem diferentes das que aparecem nas propagandas de cerveja. Eram mesmo anos loucos. Didi poderia estar em Paris mas estava aqui. Só agora a vemos, pois a memória ensina Woody Allen tem dessas coisas.
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