Irritação do governo teria feito ONU recuar de críticas a texto
Foi a irritação do governo brasileiro com o discurso de Ban Ki-moon na quarta-feira sobre a insuficiente ambição do documento final da Rio+20 que levou o secretário-geral das Nações Unidas a convocar ontem uma entrevista às pressas com a imprensa brasileira, com o objetivo de se desdizer: agora, Ban Ki-moon classifica o texto final da Rio+20 como "ambicioso, amplo e prático".
Segundo fontes diplomáticas ouvidas pela reportagem, a irritação do governo brasileiro foi transmitida de forma "pouco suave" à ONU, e partiu principalmente da presidente Dilma Rousseff.
Na ONU, há certo desconforto com a situação. A visão é de que a diplomacia brasileira conseguiu de fato um grande feito em fechar em dois ou três dias um documento que vinha sendo debatido pelos países, com um enorme número de discordâncias, por meses. Há genuína admiração pelo trabalho do Itamaraty.
Por outro lado, a percepção é de que seria impossível, mesmo para a hábil diplomacia brasileira, resolver um número tão grande de contenciosos sem reduzir a substância e a ambição do texto. A timidez do documento final é uma conclusão quase unânime, variando apenas o grau da crítica muito mais ácida no caso das ONGs, atenuada e buscando aspectos positivos no caso dos governos que vão assinar o texto.
A conferência está sendo realizada na esteira da pior crise econômica desde a década de 1930, o que reduziu a disposição de financiamento dos países ricos, tornando o ambiente de negociação mais recriminatório e menos propenso a alcançar a almejada ambição.
Agência Estado
Ministra bate boca com ambientalistas
A ministra Izabella Teixeira, do Meio Ambiente, discutiu com ambientalistas ontem, defendeu as políticas ambientais do governo e jogou a culpa no antecessor, Carlos Minc, pelo licenciamento da polêmica usina de Belo Monte. O entrevero aconteceu durante um evento paralelo do Ministério do Meio Ambiente, no qual foi anunciado mais dinheiro para um programa de áreas protegidas na Amazônia.
Ambientalistas ergueram cartazes representanto cartões amarelos para Dilma Rousseff sobre o Código Florestal. Depois, interromperam a fala da ministra para atacar os retrocessos ambientais do governo, como o licenciamento de Belo Monte. Exaltada, Izabella respondeu às críticas e disse a uma manifestante: "Em 1992 você nem era nascida".
"O licenciamento de Belo Monte foi feito pelo ministro Carlos Minc", afirmou. O processo foi iniciado na gestão Minc, mas a licença foi concedida em junho de 2011, já na gestão de Izabella. (Folhapress)
Enquanto um enorme aparato de segurança cerca os chefes de Estado concentrados na redoma que se formou na Rio+20, nenhum policial foi avistado pela reportagem nas duas vezes em que a Gazeta do Povo esteve no Aterro do Flamengo, onde é realizada a Cúpula dos Povos. Mas o clima é de paz. Uma multidão vinda das mais diversas partes do Brasil e do mundo se encontra em tendas nas redondezas do Museu de Arte Moderna. É desse espaço dominado pelos movimentos sociais que saem todas as grandes manifestações que se espalharam pelo Rio de Janeiro nos últimos dias. A Cúpula dos Povos é um evento de base, voltado para as pessoas. Centenas de reuniões e debates são realizados no espaço, que é aberto a quem quiser participar, ouvir ou contribuir. Há um distanciamento físico e político das discussões travadas no Riocentro, que abriga governantes e diplomatas. Cerca de 45 quilômetros e um trânsito caótico separam os dois lugares, mas as diferenças não param por aí. A Cúpula dos Povos termina amanhã.
Um ambiente que transpira vida e paixão
Se na reunião de chefes de Estado no Riocentro quase ninguém está disposto a mudar coisa nenhuma, na Cúpula dos Povos os participantes acreditam que podem transformar o mundo. A ideia que transpassa todo o evento popular é a de empoderamento da pessoas. É a noção de que as mudanças não são consistentes se partirem de cima para baixo e que o povo tem o poder de pressão. A sociedade ganha voz. O ambiente no Riocentro, por vezes, parece tomado por seres robotizados. Já a Cúpula dos Povos transpira vida. Ao ar livre, tudo é menos mecânico e padronizado. É onde o automóvel não tem vez e o espaço é dos pedestres e dos ciclistas.
A diversidade de assuntos e causas defendidas é o ponto forte e ao mesmo tempo o calcanhar de Aquiles da Cúpula. Com tantas atividades acontecendo ao mesmo tempo, a impressão é de que cada grupo está mais preocupado apenas com suas próprias causas e o conceito de integração se perde um pouco. A lógica intrínseca é de que tudo está ligado. Se desenvolvimento sustentável considera os aspectos social, econômico e ambiental em prol do bem-estar de todos no planeta, quase toda a gama de movimentos sociais se sentiu chamada a participar da Rio+20. Desde os que defendem que o problema do mundo é a devastação que ocorre dentro das pessoas seja pela alimentação inadequada, seja pela falta de espiritualidade aos que têm reivindicações bem específicas, como a regulação da propaganda direcionada ao público infantil.
Rosana Vicente Gnipper, coordenadora do grupo que ouviu 1.246 paranaenses para saber que ações eles consideravam que deviam ser priorizadas no desenvolvimento sustentável no estado, lamenta apenas que não tenha acontecido um envolvimento maior da sociedade não engajada na Cúpula dos Povos. "Tem tanta gente interessante aqui e estamos falando somente entre nós [pessoas já participantes de movimentos sociais]", diz.
Laços estreitados
A cúpula é o espaço onde os ativistas trocam experiências e conhecem realidades diversas das suas. Moradora de Natal (RN), Beatriz Barbalho conta que conheceu muitas pessoas durante a Cúpula dos Povos. Centenas de quilômetros separam sua terra natal da dos povos indígenas do Alto Xingu, na Amazônia, com quem ela teve a oportunidade de trocar informações.
"Isso aqui é uma confluência de pessoas. São muitas bandeiras hasteadas. A gente tem a tendência de achar que a nossa é a mais bonita, que deve estar levantada sozinha, mas não é assim. O que o mundo precisa é desse respeito pela diversidade", comenta. A ativista potiguar integra o movimento Permacultura, que defende que é possível viver em comunidade de forma sustentável. Para ela, o evento popular é relevante porque reúne as pessoas que sentem diretamente na pele os reflexos dos problemas socioambientais.
Mercadão oferece de bolsa a camiseta
Ativistas messiânicos que pregam a redução do consumo como única saída ambientalmente correta teriam ímpetos de implodir a Cúpula dos Povos. A reportagem contou mais de 300 pontos de vendas de produtos no lugar em que ocorre o segmento popular da Rio+20. É mais do que o número de espaços destinados ao debate dos problemas ambientais. E mais do que a quantidade de lojas de um grande shopping. Não existe uma estimativa oficial, mas muito dinheiro está circulando entre as tendas da Cúpula dos Povos.
Índios-comerciantes são atrações e fazem pose de garoto-propaganda. Vendedores de alimentos orgânicos e de artesanato dividem espaço com muitos ambulantes cariocas que oferecem sombrinhas e saídas de praia com imagens turísticas do Rio de Janeiro, miniaturas do Cristo Redentor e cerveja gelada. Palavras de ordem são gritadas ao mesmo tempo em que promoções são anunciadas aos berros.
Não são poucos os ambientalistas descontentes com o fervor mercantilista dentro da Cúpula dos Povos. Para eles, os debates, que devem ser o foco do evento, muitas vezes ficam em segundo plano diante dos atrativos da venda resultando na dispersão de público e ativistas, que passam a destinar mais tempo para o comércio do que para as discussões que poderiam travar perambulando de tenda em tenda.
De tudo um pouco
Para muitos participantes, a Cúpula dos Povos é uma oportunidade de financiar os movimentos sociais e ainda vender para um público diferenciado, que valoriza produtos artesanais ou feitos de materiais reciclados, incentiva o valor agregado pela manufatura e dispensa atravessadores. Bolsas, roupas, colares e artigos de decoração estão em estandes, barraquinhas e também espalhados pelo chão ou pendurados em varais, numa profusão de materiais e cores. E tal qual uma feirinha, o povo faz fila para ver, pechinchar e comprar.
Representantes de movimentos que questionam o consumo exacerbado criticaram a organização do evento por causa da lógica de mercado instalada na Cúpula dos Povos. "Mas também reconhecemos que são, na maioria, produtos artesanais que são a fonte de sobrevivência dessas pessoas. Mas realmente tem consumo demais", comenta Sônia Braz, representante do Rio de Janeiro no Fórum Brasileiro e no Conselho Nacional de Economia Solidária.
Em todas as manifestações que partiram da Cúpula dos Povos, o discurso vigente foi o de que a vida não pode ser tratada como mercadoria. Mas é lá onde a Rio+20 virou camiseta à venda.
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