Um projeto tão explosivo quanto o Código Florestal cuja aprovação ou veto está na mesa da presidente Dilma Rousseff promete causar novo embate com a bancada ruralista. A Câmara dos Deputados analisa a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n.º 215/00, que pretende transferir para o Poder Legislativo o poder de decisão sobre a demarcação de reservas indígenas e terras de quilombolas.
O Brasil não tem lei específica sobre o tema. Em 1996, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, por meio do Decreto n.° 1.775, determinou que as terras indígenas seriam "administrativamente demarcadas por iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio" no caso, a Fundação Nacional do Índio (Funai). Em 2003, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou outro decreto, o de n.º 4.887, estabelecendo que cabe unicamente ao Poder Executivo a delimitação de áreas quilombolas. Esse decreto é atualmente alvo de contestação no Supremo Tribunal Federal (STF).
A PEC 215 foi apresentada em 2000 pelo então deputado federal Almir Sá (PPB-RR) e passou 12 anos engavetada até que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovasse o texto, em março deste ano. Agora, aguarda que o presidente da casa, o deputado Marco Maia (PT-RS), forme uma comissão especial para discutir o mérito da proposta. Índigenas e defensores dos quilombolas alegam que a aprovação da PEC vai dificultar ainda mais a demarcação de terras.
Críticas
Para Cretã Kaingang, coordenador político da Articulação dos Povos Indígenas do Sul do Brasil, a mudança vai deixar os povos indígenas e quilombolas nas mãos da bancada ruralista, que hoje é muito forte no Congresso. Kaingang diz que a PEC é inconstitucional e antidemocrática. "A Constituição nos garante o direito à terra e precisa ser respeitada. Nós [os indígenas] não temos nenhum representante no Congresso e isso tornaria mais difícil a demarcação."
O presidente da União de Negros pela Igualdade (Unegro), Edson França, afirma que a PEC vai dar mais poder a um setor muito conservador e fortemente organizado. Como exemplo, ele menciona o Estatuto da Igualdade Racial (que trata do direito dos quilombolas sobre as terras em que vivem), que enfrentou forte resistência na bancada ruralista até ser aprovado. "Há um conflito surdo, mas presente, na disputa de terras", diz.
Já a advogada Vanessa Lois, especializada na área ambiental, não acredita que passar a decisão sobre as demarcações para o Legislativo beneficiará os ruralistas. "Existe um risco de que a batalha seja tensa, mas teremos uma disputa entre forças políticas. Da mesma forma que existe a bancada ruralista, os ambientalistas também têm força", analisa.
Ela também pondera que, independentemente de a decisão estar com o Executivo ou o Legislativo, não há como prever se a demora na definição das demarcações será maior ou não.
Constituição não diz quem deve demarcar
Mesmo com o temor das sociedades indígenas e quilombolas de que a PEC 215 possa ferir seus direitos, o projeto não pode ser considerado inconstitucional, segundo a advogada Vanessa Tavares Lois, especializada em Direito Ambiental. Ela argumenta que a Constituição não especifica qual dos poderes da federação deve fazer a demarcação das terras. "A Constituição coloca apenas que a competência é da União", explica.
O professor de Direito Constitucional do Centro Universitário de Curitiba (Unicuritiba), Dalton Borba, concorda que o projeto não fere a carta magna. Ele explica que a PEC é uma norma superior aos decretos já aprovados. "Esses temas são de interesse nacional e precisam passar pelo Congresso para serem regulamentados por lei", opina.
Já o professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná Egon Bockmann diz que a inconstitucionalidade depende do conteúdo da PEC. Na Carta de 1988 está previsto, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), no artigo 68, que, no caso dos quilombolas, é "reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos". "Se a PEC porventura implicar na procrastinação ou ferir esse direito, ela é inconstitucional".