Sem saudosismo
Graças ao arquivo digital, nenhum programa de tevê chegará ao fim
Durante quase 40 anos, nossos pais e avós mantiveram uma lembrança carinhosa da série norte-americana Perdidos no Espaço, também exibida no Brasil. O programa estava imediatamente relacionado à nostalgia pela infância. Quando a série de Irwin Allen foi reeditada em DVD, no começo dos anos 2000, os fãs originais tiveram uma pequena decepção. O protagonista John Robinson já não parecia tão heróico era inclusive raso , o robô B9 estava menos crível e o doutor Smith não erá lá um sujeito tão mau apenas invejoso e solitário.
Mas essa foi, provavelmente, a última geração a desenvolver memória afetiva em relação a um produto cultural. O fim da exibição de reprises permitiu que detalhes sobre o enredo e a produção fossem esquecidos, mas permaneceram as recordações sobre as tardes divertidas passadas em frente à tevê.
Nenhum seriado jamais terminará novamente. Após o fim da narrativa, os episódios seguem à disposição na internet. Os fãs poderão assistir mais uma vez a eles a cada par de anos, realizando releituras sobre a obra que estarão atreladas ao amadurecimento intelectual do espectador. Os maléficos "doutores Smiths" do futuro sempre ganharão uma segunda chance.
Pulverização
Para o pesquisador da USP Paulo Roberto Ramos, que também tem experiência em literatura brasileira, teoria e história do cinema, o arquivo digital representa também a pulverização de produtos e gostos. "O espaço tradicional também era um limitador da produção. Mas a internet possibilita que mais coisas sejam produzidas. Artistas que seriam pouco conhecidos acabam tendo contato com apreciadores de seu trabalho, às vezes por um contato direto com o artista", diz.
Morte revivida
Morto em 2006, o ator Irving São Paulo foi um dos assuntos mais comentados nas redes sociais em maio deste ano. Alguns blogueiros e sites reproduziram a notícia como se a morte tivesse recém ocorrido, e o assunto foi um dos mais procurados nos sistemas de busca da internet. O caso se tornou um exemplo das dificuldades de se diferenciar o presente do passado na internet. Irving morreu, no Rio de Janeiro, aos 41 anos de falência múltipla dos órgãos após ser internado com um quadro avançado de inflamação do pâncreas.
"A gente pensa ser possível encontrar tudo e armazenar tudo. Mas isso é impossível tecnológica e humanamente."
Fernanda Galli, pesquisadora da USP-Ribeirão Preto.
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No conto Funes, o Memorioso, o escritor argentino Jorge Luis Borges apresenta um personagem que, após um acidente, passa a ter a capacidade de memorizar tudo o que passa diante de seus olhos. Devido a essa aptidão, o personagem aos poucos começa a ter problemas de personalidade. Sem poder esquecer, seu conhecimento deixa de ter critérios e não serve mais como parâmetro para defini-lo.
A internet também está cada vez mais "memoriosa". Os casos de pessoas que tiveram algum constrangimento pessoal ou profissional devido a fotos ou texto publicados vários anos atrás se tornaram comuns. Notícias arquivadas ganham sobrevida com os mecanismos de busca, e programas de televisão de décadas atrás têm a mesma disponibilidade do próximo capítulo da novela. Esse fenômeno está ocorrendo justamente agora, quando a internet chega aos seus vinte e poucos anos e começa a amadurecer. Cabe, portanto, a pergunta: se toda a informação acumulada se encontra em um mesmo nível de acessibilidade, como diferenciar o presente do passado?
Fim do esquecimento
Um artigo do acadêmico norte-americano Jeffrey Rosen publicado na revista do jornal The New York Times em 2010 defende enfaticamente que a internet representa o fim do esquecimento. Rosen, que é especialista em Direito, analisa o caso de uma professora universitária que foi demitida da instituição em que lecionava após o reitor encontrar uma foto antiga dela em uma rede social.
Na imagem, a professora aparecia em uma festa usando um chapéu de pirata e bebendo em um copo de plástico. "O fato de a internet jamais esquecer ameaça, em nível quase existencial, a nossa capacidade de controlar as nossas identidades, de nos reinventar e começar do zero, de superar o nosso passado ", argumenta Rosen.
"Nossa cultura tem se tornado cada vez mais narcisista. A necessidade de autoexposição, um fenômeno que é típico da nossa época, pôde ser ampliada pelos meios digitais", avalia Paulo Roberto Ramos, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) na área de Psicologia Social de Fenômenos Histórico-Culturais.
A produção científica sobre o tema cunhou dois conceitos: hiper-personalização e despersonalização. Eles parecem opostos entre si, mas são causa e consequência de um mesmo processo. A hiper-personalização está relacionada à produção de conteúdo gerada pelo usuário, característica da chamada web 2.0. Na rede, o indivíduo cria uma imagem a partir da relação que ele declara ter com os produtos culturais. São as fotos de viagem, os filmes e músicas preferidos, até a escolha da cor do pano de fundo da página é parte do processo de identificação. Os produtos abraçados, entretanto, possuem significados próprios, que foram socialmente construídos e passam a constituir a personalidade virtual do indivíduo independentemente de sua vontade, criando a despersonalização.
A internet é um meio de comunicação em que os porquês raramente se tornam evidentes. "Gosto de O Poderoso Chefão", informa um perfil sobre as preferências cinematográficas do usuário. Mas será por que é um sólido drama sobre relações familiares ou por que tem muitas cenas de violência?
"Nesse meio não entendemos a memória como algo individual, mas um entrelaçamento de memórias ao longo de um determinado tempo", ressalta Fernanda Galli, pesquisadora do E-L@DIS (Laboratório Discursivo: sujeito, rede eletrônica e sentidos em movimentos) da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto (SP).
O Google tudo sabe e tudo vê
E o Google se fez verbo. A ferramenta de busca se tornou a primeira solução para quem deseja elucidar uma dúvida ou ampliar a quantidade de informações sobre um tema. É o disco rígido da humanidade, cujos avançados provedores criaram uma sensação de segurança plena, a ponto de influenciar a maneira como os usuários dispõem da memória.
É um processo neurobiológico conceitualmente simples. O cérebro se condiciona a dar prioridade às tarefas imprescindíveis e menosprezar o que pode ser resolvido de outra forma. Uma pesquisa conduzida por Betsy Sparrow, do Departamento de Psicologia da Universidade Columbia (EUA), mostrou um efeito prático desse processo. Os cientistas estabeleceram dois grupos de pessoas com perfis de memória e inteligência semelhantes. A ambos foi entregue uma mesma lista com algumas informações, mas para um dos grupos foi informado que aquele material estaria disponível no computador à sua frente. Retiradas as listas (e os computadores), os participantes do grupo em que não foi prometido o backup conseguiram lembrar até 60% mais informações.
As máquinas falam?
Em editorial publicado no The New York Times, em maio último, o jornal avalia o precedente legal criado por um processo civil movido por uma empresa insatisfeita com a sua posição na lista de resultados do Google.
Essa companhia entendia que, devido ao seu histórico no setor, deveria ser uma das primeiras colocadas. A gigante da internet defendeu (e ganhou) a causa invocando a primeira emenda da Constituição norte-americana: direito à liberdade de expressão. "As máquinas falam? E, se falam, têm direito à livre expressão?", indaga o texto do jornal, sem chegar a uma resposta definitiva.
"A rede não se isenta das relações de poder que permeiam as relações humanas", opina Fernanda Galli, da USP-Ribeirão Preto. "A gente pensa ser possível encontrar tudo e armazenar tudo. Mas isso é impossível tecnológica e humanamente."
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