Ói o trem
O projeto pelos trilhos apresenta subsídios para aquecer o debate sobre o patrimônio industrial assunto que tem mobilizado o país, em especial as grandes cidades.
- A paisagem ferroviária vai dominar a cidade até 1953, quando as construções que marcam o Centenário da Emancipação Política do Paraná vão sugerir novos marcos à capital, a exemplo da Biblioteca Pública e do Centro Cívico. Até então, a arquitetura ferroviária podia ser vista nas vilas operárias, como a Oficinas, no Cajuru, e a Argelina, no Bacacheri; o Estádio Durival de Brito, do Clube Atlético Ferroviário, as garagens do Litorina e o Edifício Teixeira Soares.
- A Revista Ferroviária circulou dos anos 1930 aos 1970. Chegou a ter 7 mil exemplares por edição, confirmando a importância da categoria no país.
- Os trens não serviam só para carga. Havia os "trens do subúrbio", suprindo a ausência de ônibus e de arruamento. Os suburbanos traziam a Curitiba operários de Rio Branco do Sul, Piraquara, Barreirinha, Estribo Ahú, Colônia Argelina, Capão da Imbuia, Cajuru e da própria região do Portão.
- A entrada na Rede Viação Paraná Santa Catarina (RVPSC) e na Rede Ferroviária Federal (RFFSA), via concurso, teve um caráter curioso permitiu a ascensão social de populações mais humildes e dos negros, questão que merece ser estudada a fundo. Um deles, DAquino Borges, "negro Daquino", como era chamado, foi, em paralelo, diretor da Gazeta do Povo até os anos 2000.
- Entre os ferroviários havia altos executivos e a turma do "chão de fábrica". A função de guarda-freios estava entre as mais perigosas. Muitos, como os "turmeiros", moravam perto das ferrovias, nas vilas, porque a "rede não podia parar". A qualquer momento a turma era acionada.
- Em 1972, com a inauguração da nova Rodoferroviária, firma-se em definitivo que a "rodo" se sobrepõe à ferrovia. A ferrovia é obstáculo, como mostram o Viaduto do Capanema e o Viaduto do Estádio Durival de Brito. O novo viaduto anunciado em 2011, idem, repete a lógica de que as linhas são um hiato urbano.
Se você estiver perto de um computador, não se acanhe. Interrompa a leitura, acesse www.pelostrilhos.net e faça o que sempre teve vontade, mas talvez tenha lhe faltado meios e coragem para tanto: percorra uma a uma as linhas de trem que cortam Curitiba. Se ao final do percurso visual restar a suspeita de que a capital do Paraná tem uma relação malresolvida com uma de suas principais paisagens a paisagem ferroviária , os autores desse vídeo se darão por satisfeitos. A eles.Ao longo de 2010, um grupo de quatro pesquisadores as antropólogas Dayana Zdebsky de Cordova e Aline Iubel, o historiador Fabiano Stoiev e o fotógrafo Leco de Souza fizeram, ao vivo e em cores, uma maratona pelas estradas de ferro da cidade. Seguiram com lápis, prancheta e máquina fotográfica a tiracolo. Conversaram com 30 ferroviários, vasculharam documentos, leram uma papelada amarelada de Baudelaire a Nestor Victor. Com a assessoria dos arquitetos Gabriel Gallarza e Maria Baptista, demarcaram os trechos em que a paisagem ferroviária está em dias de ruir.
O resultado da empreitada é o primoroso Pelos Trilhos: paisagens ferroviárias de Curitiba um livro, também passível de download e um audiovisual. Diferentemente de muitos projetos do gênero, porém, esse não é o tipo de trabalho que descansa em paz em alguma estante depois da noite do lançamento. A pesquisa do quarteto tem tudo para se tornar uma espécie de Bíblia do que vem daqui para frente a definição de uma política de preservação da paisagem ferroviária, pois já são horas.
A razão prática dos gestores e os interesses alhures até podem apontar para a necessidade de dar fim aos trilhos, ao casario e aos prédios administrativos das duas redes que formaram a paisagem (a RVPSC e a RFFSA), passando por ali mais uma pista de automóveis. Mas a razão histórica não se rende tão fácil assim depois de acompanhar, qual um romance, o primoroso texto de Stoiev e sua trupe.
A proeza dos autores foi ter evitado resvalar na sequência burocrática de datas para mostrar o mais importante: não foi o plano diretor nem as linhas de ônibus que determinaram o desenho e o destino da cidade, mas a linha do trem. Basta pensar na antiga Estação Ferroviária, na Rua da Liberdade rebatizada como Rua Barão do Rio Branco e outras paragens que foram se costurando em torno dos trens e levando ao coração de Curitiba, a Praça Tiradentes. "O Paço Municipal é um exemplo. Idem o Rebouças, primeiro setor industrial da capital", lembra Stoiev.
Sinônimo de atraso
A costura deixou de acontecer em 1965, num golpe de misericórdia, quando os próprios engenheiros da RFFSA declararam, em documento, que a ferrovia um dia sinônimo de riqueza estava prejudicando a expansão e o progresso da cidade. "Houve um processo. Primeiro a linha era progresso, modernidade, havia dependência do trem. Quando houve necessidade de espaço para passar os carros, virou sinônimo de atraso", reforça o historiador.
Pode-se afirmar, ainda que sem provas científicas, que um a cada dez curitibanos deve ter repetido, algum dia, um impropério contra a rede. O apito do trem e o serão nos sinaleiros esperando o comboio passar deixaram de ser motivo de orgulho para ganhar a chancela de estorvo. O caso mais notório é a Ponte Preta, caso flagrante de apagamento do passado. Tombada pelo Patrimônio Histórico Estadual é, continuamente, vítima da intolerância urbana. Basta uma carroceria enroscar na base de ferro para que peçam sua retirada.
Indagado se houve um "Baile da Ilha Fiscal", marcando o fim de "era ferroviária" em Curitiba, Fabiano diz desconhecer, mas aponta uma série de fatos que levaram à decadência de uma história que durou mais de meio século. Um dos motivos são os anos Juscelino Kubitscheck e a afirmação da indústria automobilística, no final dos anos 1950. Mas não deixa de ser curiosa a rapidez com que os curitibanos viraram essa página.
Não se trata de exagero. O projeto Pelos Trilhos indica, nas linhas e nas entrelinhas, a sociedade típica que gravitava em torno dos trens. A classe ferroviária chegou a 8 mil pessoas. Difícil, então, não ter um na família ou conhecer de vizinhança. Havia uma elite no setor. E um operariado com seus mitos a exemplo do "guarda-freios" e depois chefe de trem Isaac Lazzarotto, dono do Vagão do Armstício, uma restaurante informal frequentado por políticos do quilate de Manoel Ribas e por cantores do rádio. Era ninguém menos do que o pai do artista plástico Poty Lazzarotto.
"Curitiba tem uma dívida com a paisagem ferroviária e com os ferroviários. Eles tinham uma identidade própria", defende a antropóloga Dayana, lembrando das redes de sociabilidade, como clubes e escolas de samba, e de bairros inteiros em torno da rede, como o Capanema. Resta saber acertar as contas com essa memória. "Muitos moradores da Vila Argelina e de outros pontos se sentem gente de uma ocupação. É uma relação delicada...", reforça.
Legado
Hoje, o legado da Rede Ferroviária Federal está sob custódia e curadoria do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan. Menos mal. Não se trata de um tombamento à moda antiga, nem garante a integridade do conjunto da obra, apenas de parte delas. Vilinhas com casas de madeira podem desaparecer a qualquer momento. Edifícios como o Teixeira Soares, na Rua João Negrão, estão a salvo este será ocupado pela UFPR.
O que está em jogo é o que será dos trilhos. Dayana, Aline, Fabiano e Leco não se arvoram em responder. "Não nos ocupamos disso. Já é complicado o bastante falar com o Ippuc, com a Urbs, com o Iphan..." Mas não resistem à tentação. Mal não faria se, um dia, com a saída dos trens de carga, novos trens de passageiro fossem implantados. É justo o que passa pela cabeça ao circular no site. Se você também pensou nisso, o quarteto também se dá por satisfeito.
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