O reencontro aconteceu por acaso. Tupperware cheio de doces à tiracolo, Josiane Bezerra reconheceu de pronto a maestrina Dulce Primo, 74. “Duuulce! Sou eu, a Josiane, do coral. Lembra?”. Dulce lembrou. Hoje com 31 anos, a vendedora ambulante participou do coral do Palácio Avenida entre 1994 e 1998, enquanto esteve acolhida em uma das instituições mantidas pelo HSBC. Orgulhosa, quis mostrar para a maestrina que as lições não foram esquecidas e cantarolou parte do repertório musical natalino em pleno calçadão da Rua XV.
Vagas para anjos também são disputadas
Cada criança e adolescente do coral é acompanhado por um colaborador do HSBC – os “Anjos”. Dulce explica que a função deles é cuidar dos coralistas para que tudo ocorra bem durante as apresentações. Para isso, os voluntários recebem orientação sobre como lidar com os menores, o que devem fazer para garantir a segurança das crianças e o que não devem fazer.
“Os anjos só conhecem as crianças no dia do ensaio geral. A função deles não é dar assistência, quem quiser fazer isso deve buscar o caminho pela casa-lar. Eles estão lá para que a criança se sinta segura e protegida durante as apresentações. A relação interpessoal é bem esclarecida”, explica Dulce.
As vagas são disputadíssimas. Todos os anos, o número de inscritos extrapola o número de vagas. Darcy Júnior, 42, garante seu lugar à janela há 15 anos, desde que começou a trabalhar no HSBC. Fã das celebrações natalinas, para ele o evento proporciona uma vivência verdadeira do Natal. “Sem falar do convívio com as crianças, que é uma diversão à parte. Tem dois momentos que até hoje me dão frio na barriga: o dia em que os anjos conhecem as crianças de que quem vão cuidar e o dia da estreia na janela.”
“Tenho voz para cantar até hoje por causa disso aqui”, contou, indicando o palacete já com os primeiros arranjos para o Natal. “Sei de cor as músicas e sempre que dá, venho assistir o coral.” Quase 20 anos depois, “cantar na janela” ainda é parte de sua memória afetiva.
Evento dos mais tradicionais em Curitiba, o Natal do Palácio Avenida marcou a história de algumas centenas de crianças que, como Josiane, puderam cantar das janelas do prédio histórico ao longo de 25 anos desde que o coral foi criado. O projeto também é parte das lembranças natalinas de milhares de pessoas que, contagiadas pelo clima dessa época, acompanham as apresentações todos os anos. O que a maior parte desse público fiel não imagina é que o projeto também mobilizou mudanças importantes na vida de muitas crianças e adolescentes que passaram por ele.
De acordo com Dulce, cuja história pessoal também se cruza com a do coral, sob sua batuta há 21 anos, boa parte dos que participaram do projeto de educação musical cultivam a relação com a música até hoje, participando de corais de igrejas e bairros; alguns, inclusive, decidiram fazer da música profissão e hoje estudam na Escola de Belas Artes; e há ainda aqueles casos em que o coral promoveu encontros definitivos entre os coralistas e os “anjos” (servidores do HSBC que acompanham as crianças durante as apresentações) – já teve até adoção.
“As lembranças que eles têm do coral são muito felizes. Eles não lembram tanto das músicas, mas do estar junto, da preparação para as apresentações, das peripécias que aprontaram. Eles dizem que querem cantar de novo, que querem ser Anjo. Para mim, esse retorno é a confirmação de que esse trabalho é importante, porque a gente vê que foi eternizado na memória de quem participou.”
“Todas as crianças saem com uma experiência fantástica”
A maestrina Dulce Primo calcula que mais de cinco mil crianças tenham passado pelo coral ao longo dos 21 anos em que ela está à frente da direção musical e pedagógica do projeto. A idade mínima para integrar o coral é 7 anos e a máxima, 17. Muitas crianças crescem participando no coral. “As crianças permanecem no projeto até serem inseridas no mercado de trabalho por meio do programa Menor Aprendiz ou serem adotadas”, explica. “Mas todas saem com uma experiência fantástica que só a arte proporciona, que é transportar a pessoa para um universo menos cruel. O coral é uma acolhida afetiva, os encontros são cheios de vida.” O perfil da criança precisa ser respeitado, defende. “[Ela] precisa querer estar ali. Há aquelas que não têm interesse pela música (...) respeitamos.”.
A história de Natasha Nogueira, 18 anos, é uma das mais ligadas ao coral – segundo ela própria. Ela ingressou no projeto aos 7 anos e participou de nove edições como coralista. A relação com a música foi determinante: hoje, é aluna da Escola de Belas Artes da UFPR e segue acompanhando o coral de perto, agora como estagiária, ensinando as crianças a tocar violoncelo. “Me vejo naquelas crianças, lembro de como eu era quando entrei no projeto e no meu processo de mudança para o que eu sou hoje. Fico pensando se eu seria o que sou se não tivesse entrado no coral 12 anos atrás.”
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