Alface com açúcar. Se alguém perguntar, Fernando Klüppel Batista, 63, manda dizer que essa é a memória gastronômico-afetiva de sua vida. É que alface com açúcar não é salada, mas sobremesa e mais: é lembrança dos anos compartilhados com dona Frida Ignês, a avó materna cujo nome e quitutes servidos aos netos evidenciam a descendência germânica.
Na Ponta Grossa da década de 50, Fernando morou com a avó quando os pais mudaram para Guarapuava. O período foi decisivo para a formação emocional do engenheiro e muito disso tem a ver com a culinária alemã – a via pela qual mais facilmente se mantêm as raízes, posto que se cozinha e come todos os dias. Na casa dos Klüppel, a mesa posta era o resgate da Alemanha, terra dos bisavós de Fernando.
“A alface era clássica. Ao invés de sal, açúcar; de salada, virava sobremesa”, defende, ciente do estranhamento que o quitute provoca. “É coisa de alemão”, concluí. Tão coisa de alemão que quando foi morar com os avós paternos deixou de comer as folhas verdes açucaradas. É que dona Angelina, a avó italiana, se recusou a prepará-las. Naquela época, ele explica, existia uma espécie de rivalidade entre as famílias descendentes de italianos e de alemães.
A relação entre comida, memória, tradição e identidade já foi apontada em vários estudos. O historiador e ex-reitor da UFPR, Carlos Roberto Antunes dos Santos, cuja obra se debruçou sobre a alimentação a partir da perspectiva sociocultural, dizia que nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro – todos eles estão ligados a usos, costumes, protocolos, condutas e situações.
“Os hábitos e práticas alimentares de grupos sociais se constituem tradições culinárias que fazem com que o indivíduo se considere inserido num contexto sociocultural que lhe outorga uma identidade, reafirmada pela memória gustativa”, escreveu.
Memórias que permanecem
Determinantes na construção de relações afetivas, alguns sabores permanecem memória mesmo quando os hábitos alimentares mudam radicalmente. É o caso da chef vegana Mariana Cavalcanti, 28. Apesar de ter eliminado alimentos de origem animal do cardápio há 15 anos, é a lembrança da torta de sardinha feita pela mãe que coloca coração e paladar em sintonia.
“Penso na torta e imediatamente lembro da nossa casa em Guaíba, do aconchego, de ser cuidada. A mãe sempre preparava a torta e o cheiro se espalhava. Sinto o cheiro e o sabor ainda hoje.”
A neurociência já comprovou que o paladar e o olfato têm poder de resgatar o passado. Isso porque são sentidos exclusivamente sentimentais, os únicos a se conectar com o hipocampo (centro da memória de longo prazo), enquanto os outros – visão, tato e audição – são processados pelo tálamo (fonte da linguagem e da consciência) e, por isso, não tão eficientes em evocar o passado.
O sociólogo e folclorista Câmara Cascudo, em seu livro A história da alimentação no Brasil, afirma que o paladar remonta aos laços que unem indivíduos e comunidades. “O alimento é um elemento fixador psicológico no plano emocional e comer certos pratos é ligar-se ao local ou a quem o preparou.”
É por isso que, com frequência, a memória gustativa nos lembra, pela boca, quem fomos e quem somos. É por isso que Mariana recorda o aconchego materno quando lembra o sabor de uma torta que não come há 15 anos e Fernando se sente “mais alemão” quando come alface com açúcar (e afeto).