| Foto: Felipe Meyerle/

Alface com açúcar. Se alguém perguntar, Fernando Klüppel Batista, 63, manda dizer que essa é a memória gastronômico-afetiva de sua vida. É que alface com açúcar não é salada, mas sobremesa e mais: é lembrança dos anos compartilhados com dona Frida Ignês, a avó materna cujo nome e quitutes servidos aos netos evidenciam a descendência germânica.

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Um assunto para Deleuze, Proust e Bourdieu

Gatilho de memória

Foi um bolinho de limão e uma xícara de chá que inspiraram o francês Marcel Proust a escrever o clássico Em busca do tempo perdido. Proust atribui ao quitute o resgate de memórias esquecidas de sua infância. “No mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim”, conta o narrador-protagonista de No caminho de Swann, primeiro volume do romance. Essa reação operada pelo paladar – e às vezes pelo olfato – é chamada de gatilho de memória.

Aprendizado

O sociólogo Pierre Bourdieu considera nossas preferências alimentares a marca mais forte do aprendizado infantil. “São lições [os gostos alimentares] que resistem por mais tempo à distância ou ao colapso do mundo nativo e que conservam a nostalgia”, escreveu. Mundo nativo diz respeito ao universo de gostos primordiais. Bourdieu defende que o gosto, especificamente o gosto alimentar, é construído socialmente e exerce papel importante na diferenciação social, uma vez que exprime estilos de vida e classes distintas.

Comer é chato

A comida e o comer não agrada a todos, no entanto. O filósofo Gilles Deleuze considerava comer a coisa mais chata do mundo. “Comer nunca me interessou e acho chatíssimo. Comer sozinho é terrível. Comer acompanhado muda tudo, mas não transforma a comida, só me permite suportar comer [...]”, disse em famosa entrevista que depois virou livro (O abecedário de Deleuze). Apesar dessa relação particular com a comida, ele tinha seus pratos prediletos: língua, miolo e tutano. Ciente de que para a maior parte dos mortais esses alimentos são inconcebíveis, comparava: “Eu bem que suporto o queijo dos outros. Sempre suportei esse gosto que me parece igual ao canibalismo. Parece-me o horror absoluto.” Então tá.

Na Ponta Grossa da década de 50, Fernando morou com a avó quando os pais mudaram para Guarapuava. O período foi decisivo para a formação emocional do engenheiro e muito disso tem a ver com a culinária alemã – a via pela qual mais facilmente se mantêm as raízes, posto que se cozinha e come todos os dias. Na casa dos Klüppel, a mesa posta era o resgate da Alemanha, terra dos bisavós de Fernando.

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“A alface era clássica. Ao invés de sal, açúcar; de salada, virava sobremesa”, defende, ciente do estranhamento que o quitute provoca. “É coisa de alemão”, concluí. Tão coisa de alemão que quando foi morar com os avós paternos deixou de comer as folhas verdes açucaradas. É que dona Angelina, a avó italiana, se recusou a prepará-las. Naquela época, ele explica, existia uma espécie de rivalidade entre as famílias descendentes de italianos e de alemães.

A relação entre comida, memória, tradição e identidade já foi apontada em vários estudos. O historiador e ex-reitor da UFPR, Carlos Roberto Antunes dos Santos, cuja obra se debruçou sobre a alimentação a partir da perspectiva sociocultural, dizia que nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro – todos eles estão ligados a usos, costumes, protocolos, condutas e situações.

“Os hábitos e práticas alimentares de grupos sociais se constituem tradições culinárias que fazem com que o indivíduo se considere inserido num contexto sociocultural que lhe outorga uma identidade, reafirmada pela memória gustativa”, escreveu.

Memórias que permanecem

Determinantes na construção de relações afetivas, alguns sabores permanecem memória mesmo quando os hábitos alimentares mudam radicalmente. É o caso da chef vegana Mariana Cavalcanti, 28. Apesar de ter eliminado alimentos de origem animal do cardápio há 15 anos, é a lembrança da torta de sardinha feita pela mãe que coloca coração e paladar em sintonia.

“Penso na torta e imediatamente lembro da nossa casa em Guaíba, do aconchego, de ser cuidada. A mãe sempre preparava a torta e o cheiro se espalhava. Sinto o cheiro e o sabor ainda hoje.”

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A neurociência já comprovou que o paladar e o olfato têm poder de resgatar o passado. Isso porque são sentidos exclusivamente sentimentais, os únicos a se conectar com o hipocampo (centro da memória de longo prazo), enquanto os outros – visão, tato e audição – são processados pelo tálamo (fonte da linguagem e da consciência) e, por isso, não tão eficientes em evocar o passado.

O sociólogo e folclorista Câmara Cascudo, em seu livro A história da alimentação no Brasil, afirma que o paladar remonta aos laços que unem indivíduos e comunidades. “O alimento é um elemento fixador psicológico no plano emocional e comer certos pratos é ligar-se ao local ou a quem o preparou.”

É por isso que, com frequência, a memória gustativa nos lembra, pela boca, quem fomos e quem somos. É por isso que Mariana recorda o aconchego materno quando lembra o sabor de uma torta que não come há 15 anos e Fernando se sente “mais alemão” quando come alface com açúcar (e afeto).

Restaurador

A sensação de conforto e acolhimento proporcionada por alguns alimentos tem razão de ser. No livro A invenção dos restaurantes, a inglesa Rebecca Spang defende a tese de que os restaurantes se originaram de pequenos estabelecimentos que funcionavam como uma espécie de “casa de saúde”. Lá se vendia uma sopa restauradora para pessoas debilitadas. O caldo revigorante era o restaurador das forças – o “restaurant”.

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