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O Ministério da Saúde promove nesta terça-feira (28) uma audiência pública para discutir a sua nova nota técnica sobre a atenção aos casos de aborto. O documento tem caráter técnico e está em plena consonância com a legislação brasileira sobre o tema, mas, mesmo assim, tem sido alvo de ataques de parlamentares feministas e alguns formadores de opinião. A audiência poderá ser acompanhada pelo YouTube do Ministério da Saúde, a partir das 8 horas desta terça.
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“É a criminalização da vítima e perseguição de um direito das mulheres, arduamente conquistado pelo movimento feminista”, disse a deputada federal Fernanda Melchionna (PSOL-RS). “Raphael Câmara, secretário da Atenção Básica no Ministério da Saúde, elaborou um documento que orienta a investigação de mulheres que buscam seu direito ao aborto legal. Inaceitável!”, disse a deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP). Câmara, mencionado por ela, foi o editor-geral do documento.
A principal acusação contra o documento é a de que ele ajudaria a promover a perseguição contra mulheres, supostamente exigindo a investigação daquelas que solicitaram o aborto depois de terem sido vítimas de estupro. Também se critica o fato de o manual afirmar que não existe aborto legal. Os detratores do manual ainda mencionam o fato de que Raphael Câmara seria um defensor da abstinência sexual como forma de contracepção, e que isso tiraria sua legitimidade como elaborador do manual.
Mas o que diz, de fato, o documento – intitulado “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”? As críticas procedem?
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Documento diz que o "aborto legal" não existe. Isso é mentira?
Uma das principais acusações contra o a nota técnica diz respeito a um trecho em que seus autores afirmam que o "aborto legal" não existe.
“Nesta semana, o MS publicou uma cartilha na qual afirma que ‘não existe aborto legal’. Por si só já é absurdo! A lei permite que a mulher escolha interromper a gravidez em caso de estupro, risco à vida da gestante ou anencefalia do feto”, afirma Melchionna.
O manual não só não ignora essas exceções previstas em lei, como discorre sobre elas em grande parte de suas páginas. Um dos principais objetivos do documento é justamente oferecer orientação para os profissionais de saúde que precisem lidar com pacientes cuja motivação para o aborto seja uma das três mencionadas.
O que os autores fazem, na verdade, é desmentir a falácia do “aborto legal”, uma expressão que se disseminou na vida pública e que costuma causar confusão. Como explica editorial recente da Gazeta do Povo, “a expressão já havia se tornado tão corriqueira que não raro era empregada até mesmo por brasileiros que são contrários ao aborto, mas que desconhecem as nuances da redação dos textos legais e, sem má intenção alguma, concluíam que, por não ter punição prevista no Código Penal, o aborto em caso de estupro, risco de vida para a mãe e feto portador de anencefalia não seria crime. Na verdade, o crime continua existindo, mas o legislador julgou adequado não lhe aplicar pena alguma.”
A norma técnica explica: “Não existe aborto ‘legal’ como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno. O acolhimento da pessoa em situação de aborto previsto em lei deve ser realizado por profissionais habilitados”.
A nota técnica orienta a investigação das mulheres e “criminaliza a vítima”?
Outra acusação contra a nota técnica sobre aborto do Ministério da Saúde é a de que ele teria um tom persecutório contra as mulheres vítimas de estupro e incentivaria a investigação contra elas.
Na verdade, o que o documento faz é explicar a legislação brasileira sobre o tema. Ele reitera com frequência a importância de um atendimento humanizado às pessoas que decidem abortar. “Nos casos de abortamento por estupro, o profissional deverá atuar como facilitador do processo de tomada de decisão pela mulher, respeitando-a”, diz o documento.
Os trechos que ressaltam a necessidade de investigação dos casos de estupro não pretendem que se coloque em dúvida a palavra da mulher, mas principalmente que se evitem casos de violência reiterada contra as vítimas, algo que tende a ser comum.
Mais do que isso, a norma técnica também ressalta a importância de punição ao autor do estupro e condena o viés de dúvida sobre a palavra da mulher. “Com o objetivo de investigar o estupro e não o aborto, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 2.561/2020, que determina a notificação dos estupros que ensejam interrupção de gravidez, com preservação de material para fins periciais. Importante consignar que essa iniciativa não objetiva verificar se a mulher faltou com a verdade ao noticiar ter engravidado em relação sexual forçada, mas fazer com que o aparato repressivo crie condições para identificar e punir o agressor”, diz o texto.
O documento deixa claro, ainda, que é necessário oferecer às mulheres a possibilidade de entregar a criança para adoção antes de partir para o procedimento do aborto: “No caso de gravidez decorrente de estupro, antes de proceder à interrupção da gravidez, a equipe multidisciplinar responsável pelo atendimento da vítima deverá informar sobre a existência do programa entrega legal ou voluntária, que possibilita à mulher levar a gestação a termo e, após o nascimento, entregar a criança para adoção”.
O elaborador do manual defende a abstinência sexual como forma de contracepção?
Recentemente, as deputadas Sâmia Bomfim e Vivi Reis (PSOL-PA) protocolaram um requerimento na Comissão dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados para que Raphael Câmara, elaborador do documento sobre aborto e secretário de Atenção Básica do Ministério da Saúde, compareça ao Plenário para esclarecer alguns pontos de seu texto.
Na petição, entre diversas acusações contra o documento, elas fazem um ataque pessoal contra Câmara, afirmando que ele “é um dos maiores defensores do projeto de abstinência sexual encampado pela ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves”.
Na verdade, o objetivo do projeto de Damares - apoiado por Câmara - é usar a educação afetiva e a informação sobre comportamento sexual como principais armas no combate à gravidez precoce, reduzindo o enfoque em métodos contraceptivos. Essa é uma estratégia de sucesso adotada pela ONG norte-americana Ascend, com eficácia já comprovada na redução da gravidez precoce.
Além de deturpar esse projeto, afirmando que se trata de uma campanha pela abstinência sexual, as deputadas ignoraram que o próprio texto da nota técnica elaborada por Câmara trata abertamente do uso de métodos contraceptivos como estratégia para evitar novos abortos.
“Nos casos de abortamento provocado, a adoção imediata de contracepção tem-se mostrado como medida eficaz para reduzir o risco de novos abortamentos”, afirma o documento. “A mulher em situação de abortamento, muitas vezes, não está preocupada com o risco de nova gravidez e não usa métodos anticoncepcionais espontaneamente. Ela precisa da orientação dos provedores de serviço e de disponibilidade de métodos eficazes e aceitáveis na redução do risco de gravidez não desejada. Portanto, o atendimento da mulher com complicações de abortamento só será completo se acompanhado de orientação sobre anticoncepção e de oferta de métodos no pós-abortamento imediato”, acrescenta.
Para que a nota técnica sobre aborto do Ministério da Saúde realmente serve?
O documento tem como objetivo oferecer ajuda técnica para as mulheres e os profissionais responsáveis por casos de aborto, oferecendo orientações para garantir a saúde mental, social e física das mulheres. Isso inclui, por exemplo, uma preocupação com a atenção clínica adequada tanto para o procedimento quanto para suas possíveis complicações do ponto de vista ético, legal e bioético.
Um dos problemas que a nota técnica busca solucionar é a falta de orientação pós-aborto das mulheres. O manual indica a importância de oferecer serviços de planejamento familiar às mulheres depois do aborto, com orientações para aquelas que desejem nova gestação.
Há também uma preocupação com a integração entre o procedimento de aborto e outros aspectos da saúde da mulher e até de sua inclusão na sociedade. Como se sabe, muitas mulheres que praticam o aborto têm complicações depois do procedimento, não só do ponto de vista físico, mas também psicológico e social. O manual quer ajudar profissionais de saúde a lidar com esses problemas.
Uma parte importante do documento, que não foi citada por detratores, aborda o acolhimento, definido como “o tratamento digno e respeitoso, a escuta, o reconhecimento e a aceitação das diferenças, o respeito ao direito de decidir de mulheres e homens, assim como o acesso e a resolutividade da assistência”. “É muito importante que o profissional se certifique de que cada dúvida e preocupação da mulher sejam devidamente esclarecidas para garantir uma decisão informada”, afirma o texto.
A nota técnica ressalta que se norteia por princípios como “a igualdade, a liberdade e a dignidade da pessoa humana”, sem admitir “qualquer discriminação ou restrição do acesso à assistência em saúde”. Cita documentos internacionais do qual o Brasil é signatário, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (2002) e para a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994), além do Pacto de São José da Costa Rica, que prevê expressamente a proteção ao direito à vida desde a concepção.
“Há mais de 30 anos, o Estado brasileiro é signatário de acordos globais que recomendam a prevenção de abortos de qualquer forma com o intuito de fortalecer famílias e crianças, protegendo a saúde de mulheres e meninas”, afirma o manual.
Outra recomendação do documento é que, a partir de 21 semanas e seis dias de gestação, em qualquer caso, seja feita a antecipação do parto em vez do aborto, com todos os esforços para salvar a vida do bebê. A orientação está em consonância com recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).