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Movimentos pró-maconha têm se expandido progressivamente com o avanço da tecnologia. Pelas redes sociais, é possível encontrar uma série de perfis que fazem apologia à droga de forma deliberada e sem qualquer restrição. O comércio de produtos à base da planta, com supostos efeitos medicinais, também cresceu – um levantamento feito pela Kaya Mind, empresa brasileira especializada em dados e inteligência de mercado no segmento da cannabis, mostrou que o Brasil conta com mais de 80 empresas com CNPJ aberto que atuam nesse mercado, mesmo sem regulamentação abrangente.
De acordo com uma dessas empresas, a Remederi, o número de médicos que prescrevem o medicamento aumentou mais de 250% nos últimos anos, saindo de 200 prescritores em 2019 para mais de 5 mil atualmente.
Há sites que indicam o passo a passo para quem deseja adquirir a prescrição necessária para a compra de produtos à base de cannabis e que apontam os possíveis benefícios à saúde do canabidiol (CBD), uma das substâncias da planta, mas sem mencionar os possíveis riscos da maconha ao organismo.
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No site PangaiaCBD, de uma empresa norte-americana que atua no mercado brasileiro como comerciante de produtos à base de cannabis, a propaganda sobre os benefícios do CBD chama a atenção. Além de apontar a substância como um analgésico natural capaz de aliviar dores, até em casos mais graves como câncer e fibromialgia, a empresa diz que o CBD reduz os sintomas de Alzheimer, Epilepsia e Parkinson e ainda melhora o sono. Os estudos sobre o uso do canabidiol para essas doenças, entretanto, ainda são de qualidade moderada ou baixa. Além disso, o uso indiscriminado da substância pode apresentar efeitos adversos e riscos ao usuário.
Por outro lado, a empresa também alega, em seu site, que não há efeitos colaterais, nem qualquer contraindicação em relação ao seu uso simultâneo com outros fármacos. A propaganda tendenciosa preocupa especialistas e movimentos contrários às drogas.
Outro site que incentiva o tratamento médico com cannabis é o PangoCBD. No portal, a empresa não esconde a tentativa de liberar o uso recreativo da droga e dá até consultoria jurídica para quem desejar cultivar a planta. Um artigo do site sobre o "boom do mercado canábico" diz que "a desburocratização continua lenta, e a legalização do uso recreativo não parece estar próxima de acontecer. De qualquer forma, a onda é forte. Porque enquanto o uso recreativo não é permitido, os brasileiros encontram outras oportunidades de investir no mercado".
Não há evidências científicas robustas sobre benefícios da cannabis
Vários estudos e a própria Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) já apontaram que não existem evidências científicas definitivas sobre os supostos benefícios da substância para a maioria das doenças. Há exceção nos casos citados pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), como para pacientes com crises epiléticas relacionadas às síndromes de Dravet, Doose e Lennox-Gastaut.
Em nova resolução que restringiu o uso de canabidiol, publicada em outubro do ano passado, o CFM explicou que as conclusões de estudos ainda são frágeis em relação à segurança e eficácia do canabidiol para o tratamento da maioria das doenças. "O Conselho considera prudente aguardar o avanço de estudos em andamento, evitando expor a população a situações de risco", declarou o CFM na ocasião.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira alertou sobre a ampla difusão de ideias falsas sobre o uso medicinal da maconha, que desprezam as pesquisas científicas mais avançadas. “A maconha não é uma mágica, como se o chá da erva pudesse fazer um doente melhorar de uma doença complexa. Não é assim que a medicina trabalha. A maconha não pode ser tratada como uma droga milagrosa, que é só fazer um chá e vai dar certo. A medicina não funciona assim. Não é seguro para ninguém virar curandeiro da maconha, e é isso que tem acontecido no Brasil”, declarou.
Os problemas do termo "maconha medicinal"
O advogado Roberto Lásserre, coordenador nacional do Movimento Brasil sem Drogas, lamenta a abordagem usada por alguns sites que, em sua avaliação, estão levando a sociedade ao erro. “Não existe maconha medicinal. Estão tentando no Brasil uma forma de a sociedade abaixar a guarda para que num futuro próximo, já que 'a maconha tem efeitos medicinais', libere-se o uso recreativo. Tentam levar a sociedade ao erro para daí para frente 'liberar geral'”, diz.
Segundo Lásserre, algumas decisões judiciais deram “brechas” para o comércio de medicamentos à base de cannabis. Ele citou, inclusive, uma decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que garantiu a três pessoas a possibilidade de cultivar a planta da maconha com a finalidade de extrair óleo para uso próprio. Segundo a legislação brasileira, o cultivo da planta configura crime.
“Foi uma decisão extremamente mal formulada permitir a plantação de maconha em casa para fins medicinais. E o pior é que vários juízes estão tomando decisões desse tipo, abrindo precedentes para uma possível liberação da droga”, explicou o advogado.
As decisões da Justiça, influenciadas por campanhas de desinformação de empresas interessadas na liberação da droga, contribuem para elevar a circulação de extratos clandestinos de canabidiol caseiro, muitos dos quais não funcionam e podem oferecer efeitos colaterais nocivos para quem os consome.
No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) liberou apenas a importação dos extratos de canabidiol e tetrahidrocanabinol (THC) para a fabricação de produtos no Brasil. Em 2019, a agência definiu que esses compostos seriam marcados com tarja preta devido ao risco de dependência, aumento de tolerância (necessidade de ingerir quantidades cada vez maiores para obter o mínimo efeito desejado) e intoxicação.
Os 20 produtos com esses elementos aprovados pela agência até o momento (não são considerados medicamentos por falta de evidências científicas consolidadas de eficácia) precisam ser prescritos com receita amarela (índice de THC menor de 0,2%) ou azul (índice de THC maior de 0,2%, maior risco).
O único medicamento à base de THC e canabidiol aprovado para ser importado no Brasil é o Mevatyl, produzido no Reino Unido. Ele foi aprovado pela Anvisa como remédio adjuvante no tratamento de espasticidade na esclerose múltipla, causada por danos ou lesões na parte do sistema nervoso central (cérebro ou medula espinhal) que controla o movimento voluntário.
Uso medicinal para liberar uso recreativo
Conforme apontam fontes ouvidas pela reportagem, parte dos apoiadores da chamada "cannabis medicinal" usam a bandeira do uso medicinal da maconha para tentar viabilizar a legalização do uso recreativo da droga.
O procurador da República Lucas Gualtieri, que é coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime (Gaeco) explica que apesar de as enfermidades que podem ser tratadas com o CBD serem limitadas, empresas que atuam no setor costumam se aproveitam de algumas propriedades medicinais para alargar o chamado “uso recreativo” da maconha.
"Há um desvirtuamento das propriedades medicinais da planta, levando ao seu uso sem os controles necessários para a própria proteção dos pacientes. Utiliza-se as propriedades medicinais da planta como pretexto para incutir na sociedade a ideia de que o uso recreativo é inofensivo, o que não é verdade, como demonstram consistentes estudos técnico-científicos", declara.
"Não há meios seguros de se controlar as doses do princípio ativo, e até mesmo a falta de controle sobre a qualidade da droga passa a ser um risco em potencial. Costumo dizer que, didaticamente, defender a legalização ampla da maconha sob o argumento da finalidade medicinal seria o mesmo que defender a legalização do ópio para viabilizar o uso medicinal da morfina", disse.
A Gazeta do Povo já mostrou o enorme interesse do mercado financeiro global na maconha. De acordo com uma análise da consultoria BDSA, publicada em março do ano passado, as vendas globais cresceram 48% em 2020 na comparação com 2019, alcançando US$ 21,3 bilhões. A perspectiva é chegar a 2026 em US$ 55,9 bilhões, o que representaria uma taxa de crescimento anual da ordem de 17%.
No Congresso Nacional, o lobby da maconha tenta a todo custo aprovar o Projeto de Lei 399/2015, que libera atividades como cultivo, processamento, armazenagem, transporte, industrialização, manipulação e comercialização de produtos à base de maconha no país e trata do uso medicinal de determinados componentes da planta. O projeto foi aprovado por comissão especial na Câmara dos Deputados e aguarda análise no Plenário da Casa.