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A linha dura adotada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após o 8 de janeiro teve como uma de suas consequências a desmobilização temporária da população e a redução de protestos no primeiro semestre do ano. Essa tendência pode estar chegando ao fim com as manifestações que acontecem nesta quinta-feira (12), em dezenas de cidades de todo o país, contra o aborto e em defesa da vida.
A direita brasileira, que, nos últimos anos, tinha criado a rotina de ir às ruas para levantar suas bandeiras, ficou acuada diante de restrições arbitrárias impostas pelo Judiciário à liberdade de manifestação: nas medidas pós-8/1, não só os que participaram de atos de vandalismo foram alvos do STF, mas também aqueles que somente estavam presentes na manifestação, que foram vistos posteriormente junto com manifestantes, ou que simplesmente demonstraram apoio a algumas pautas defendidas por quem acampou em frente ao Quartel-General do Exército.
Em janeiro, uma decisão do Supremo chegou a proibir protestos em todo o país, sem que fosse estabelecida uma data para o fim da restrição, o que é inconstitucional. Juristas consultados pela Gazeta do Povo afirmam, contudo, que essa decisão provavelmente já não vale mais, apesar de ter um texto confuso e ambíguo.
As arbitrariedades geraram medo: organizar protestos com certas pautas, em especial aquelas vinculadas à direita, tornou-se um risco. Movimentos direitistas indicaram receio de ficar juridicamente expostos ao ir às ruas sob a patrulha do Supremo.
O evento desta quinta contra o aborto ganha, por isso, um caráter de teste: trata-se da primeira tentativa de grande mobilização nacional feita por grupos vinculados à direita após o 8 de janeiro. Os organizadores apostam que esta será a maior marcha pró-vida da história do Brasil. A expectativa é que superem, com folga, as que ocorreram no último fim de semana.
O STF é um alvo somente indireto. Os organizadores querem despolitizar a marcha e, por isso, optaram por não mencionar o tribunal ou o governo Lula nas convocações ao evento. Nas entrelinhas, contudo, a principal motivação para a marcha é evidente: o voto de Rosa Weber na ADPF 442 favorável à descriminalização do aborto no país.
Os cuidados jurídicos para imunizar o evento contra qualquer decisão arbitrária são grandes. Lúcio Flávio, coordenador nacional da Marcha da Família – grupo que é o principal organizador do evento –, afirma que as pautas da manifestação deste 12 de outubro foram registradas em cartório.
"Temos um manual em que nós tornamos público e registramos em cartório quais são as nossas pautas autorais, as pautas do movimento, para que qualquer outra pauta que adentre de maneira infiltrada ou de maneira ilegítima e desautorizada não seja atribuída a nós", explicou à Gazeta do Povo.
Coordenadores locais de grupos pró-vida também relatam uma cautela maior do que o normal. Bethy Frank, que lidera o movimento Abrapa (Organização Brasileira dos Patriotas) no Paraná e está ajudando na convocação para as manifestações em Curitiba, afirma que sente nos próprios grupos de mensagens um receio em vincular-se à organização do evento.
"Você precisa realmente fazer a coisa certa e da forma certa para não correr risco. Tudo o que nós não queremos é ver pessoas tendo suas liberdades cerceadas por ir em busca da liberdade. Temos que conduzir muito bem esse povo para que ele se sinta seguro, também. E esse momento não é um momento de se sentir inseguro, porque nós vamos lá defender a vida, contra o aborto e a ideologia do gênero. Vamos defender a família e as crianças", diz.
Marcos Vitor Lessa, membro da diretoria do Movimento Conservador Escolhidos por Deus, conta que o grupo elaborou um termo de responsabilidade para quem vai discursar durante o evento na avenida Paulista, em São Paulo.
"A gente não quer 'dar bom dia a cavalo'. Nosso termo de responsabilidade tem estabelecidas algumas pautas. Toda e qualquer fala que, principalmente, possa ter a ver com calúnia, injúria, difamação ou incitação à violência, incitação contra os poderes, vai ser feita por conta e risco da própria pessoa", afirma.
Vários dos grupos que participam das manifestações deste dia 12 também estão organizando convocações para as passeatas de movimentos de direita previstas para o dia 15 de novembro, que terão pautas mais políticas que as do evento desta quinta.
Juristas dizem que manifestações contra aborto devem transcorrer sem problemas, mas fazem alertas
O advogado Miguel Vidigal, especialista em Direito Civil, recorda os artigos 5º e 220 da Constituição, que garantem, respectivamente, a liberdade de expressão e de manifestação no Brasil.
"Esses são os pilares que norteiam qualquer tipo de manifestação pública em nosso país. Eles deveriam ser o porto seguro de qualquer pessoa que pretenda realizar qualquer tipo de reunião pública e pacífica. A reação do Supremo Tribunal Federal em relação aos acontecimentos do último 8 de janeiro foram, como todos sabem, bastante enérgicas, a ponto de abafar toda e qualquer atuação pública contrária às eleições de 2022. Entendo – e espero que seja assim – que a decisão do Supremo foi pontual e não deve se estender para outros temas que sejam capazes de levar às ruas a população", afirma.
Vidigal observa que o receio de movimentos da direita de se manifestar decorre de um sentimento de duplo padrão do Supremo após decisões recentes, em especial na reação ao 8/1. "Muitos se perguntam se o direito à manifestação está proibido no país para uma parcela da população. Veja, violência e invasões de prédios públicos, inclusive do Supremo, infelizmente sempre houve no país. Em 2017, uma turba quebrou diversos ministérios de Brasília, houve um quebra-quebra generalizado, inclusive com graves avarias no prédio do Supremo. Recentemente, em 2023, fazendas tecnológicas e de pesquisas científicas pertencentes à União foram destruídas por militantes esquerdistas. Participantes de ambas as manifestações andam tranquilos pelas ruas, sem que se tenha conhecimento público de processos judiciais contra eles", comenta.
Para ele, contudo, "a mão pesada do Supremo em relação ao 8 de janeiro não deve se estender a outras manifestações públicas de viés conservador". "Muitos se perguntam se, a partir do 8 de janeiro, a relativização dos artigos 5º e 220 da Carta Constitucional será regra em nosso futuro. Entendo que não", avalia. "Na última semana, inúmeras manifestações contra o aborto transcorreram em diversas cidades pelo país, com a presença de milhares de pessoas. Pelas fotos que circulam, as forças de segurança acompanharam e garantiram a segurança ao longo desses encontros", acrescenta.
Rodrigo Marinho, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor), alerta para a necessidade de um julgamento prudente das pautas que serão defendidas no evento contra o aborto, e de pulso firme da organização do evento contra possíveis abusos.
"Tem que ser inteligente. Já há tanta bobagem que foi feita. Pedir intervenção militar, por exemplo, é uma bobagem. Vai ser usado contra. Ou falar em fechamento do Supremo… Posso pedir o impeachment de um ministro, mas não posso pedir o fechamento do Supremo. Vai ser usado contra. Não pode cair na onda desses pedidos, porque são pedidos que vão ser considerados antidemocráticos, e isso é ruim para a manifestação, que tem uma pauta muito boa, que é uma pauta pela vida. Então, é ter cautela. A organização vai ter que ser muito rígida com relação a isso, quando falarem algo pelo fim do STF, pela ditadura militar, qualquer coisa do tipo. É um erro, é um erro sempre", afirma.
Vidigal recorda que "a cautela está prevista na própria lei". "Toda e qualquer manifestação deve ter como ponto de partida o seu caráter pacífico e ordeiro. Não foi por acaso que o texto constitucional garantiu a liberdade de manifestação desde quando as reuniões públicas transcorram sem armas e pacificamente. Essa premissa é regra básica de convivência humana para encontros de grandes mobilizações."
O jurista faz a ressalva de que, no meio de aglomerações, "sempre pode haver infiltrados com o intuito de manchar legítimas demandas populares". "É preciso pensar em meios de descobrir, denunciar e entregar esses arruaceiros às autoridades policiais", diz. "Outro ponto é sempre fazer o aviso às prefeituras das manifestações. Esse alerta é obrigatório por lei e também garante o apoio da Polícia Militar para coibir eventuais violências ao longo das manifestações", complementa.