Um baú de crueldades aberto por quase 21 anos. Choques elétricos, afogamentos e muitas surras deixaram marcas intermináveis em vítimas do regime militar no Brasil. As torturas se tornaram práticas mais rotineiras após a promulgação do Ato Institucional número 5 (AI-5), em 1968, que aumentou a repressão, proibiu manifestações públicas e aboliu o habeas corpus. A medida vigorou por dez anos.
Utilizada especialmente para obter informações dos envolvidos na luta contra o governo dos generais, a tortura chegou a contar com "assessoria técnica" do Exército norte-americano. Os militares invadiam casas ou locais de trabalho. A situação piorava em delegacias e quartéis.
A Comissão Nacional da Verdade afirma que a tortura passou a ser prática sistemática da ditadura militar logo após o golpe, em 1964, e não apenas como resposta à luta armada contra o regime, iniciada em meados de 1968. De acordo a comissão, cerca de 50 mil pessoas foram presas só em 1964. Em todo o regime, pelo menos 20 mil foram torturadas de forma brutal.
No Paraná, a história se repete. A Comissão Estadual da Verdade (CEV) se baseia nas pesquisas do grupo Tortura Nunca Mais - Paraná, que dá conta de pelo menos 4 mil presos durante a ditadura. Destes, no mínimo mil sofreram tortura. Mas o número pode ser muito maior. "A gente trabalha com esses dados, mas não podemos afirmar ainda se é isso mesmo ou se são mais casos", afirma o presidente da CEV, o sociólogo Pedro Bodê.
Quatro cidades abrigaram os maiores centros de tortura no estado. Os quartéis do Exército de Apucarana, Foz do Iguaçu, Ponta Grossa e Curitiba. Na capital, as ações se concentravam principalmente no antigo quartel que existia na Praça Rui Barbosa, nas delegacias de polícia, na Delegacia de Ordem Política e Social e na Clínica Marumbi. Esta clínica, que pertencia ao Exército, ficava perto de outro quartel que existia em frente à Praça Oswaldo Cruz e hoje abriga um shopping.
Instrumentos
O catálogo de torturas era variável. Ia da psicológica, em que os militares ameaçavam familiares dos presos, à violência física. Vários instrumentos foram produzidos com a única intenção de torturar. Na chamada "cadeira do dragão", por exemplo, a pessoa sentava nua em uma cadeira revestida de zinco ligada a terminais elétricos. Quando o aparelho era acionado, o choque percorria todo o corpo. Além disso, choques em órgãos genitais eram recorrentes.
Já o "pau-de-arara" consistia em deixar o cidadão nu com uma barra de ferro atravessada entre os punhos e os joelhos e pendurado a cerca de 20 centímetros do chão. Nessa posição, o preso sofria com choques e pancadas. Estupros e afogamentos também eram comuns.
Para a professora de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná, Vera Karam, com os trabalhos das comissões da verdade o país faz o exercício de memória dos fatos. "Talvez agora seja o momento de revermos o nosso passado, as nossas práticas autoritárias e a necessidade de responsabilizar os executores de tais práticas."
Os militantes
Ildeu, na cadeia com o pai
Ildeu Manso Vieira Júnior acompanhava seu pai para realizar uma ligação interurbana. Era perto das 9 horas do dia 14 de setembro de 1975. Havia rumores de que um amigo da família tinha sido preso em Mandaguari. Pai e filho iriram usar os telefones públicos da Rodoferroviária de Curitiba para saber o que tinha acontecido. Ao subirem as escadas, dois agentes armados avisaram em tom ríspido: "Queiram nos acompanhar."
Foi nesse dia que Ildeu, de 17 anos, diz ter "visto a onça beber água". "Entramos em um Fusca do Exército. Eles nos apontaram uma arma e mandaram baixar a cabeça". Como Ildeu conhecia bem o centro da capital, concluiu que estavam indo em direção ao quartel na Praça Rui Barbosa. "Colocaram um capuz no pai e em mim um óculos preto que não me deixava enxergar nada. Me levaram para uma cela e mandaram eu sentar."
Ildeu fez sutis movimentos com as sobrancelhas para baixar um pouco os óculos e conseguir enxergar algo. "Vi muita gente na cela. Meu pai, que era membro do PCB, já tinha receio de ser preso." Pela fresta dos óculos, viu um balde gigante em que os militares frequentemente urinavam.
"Nesse balde, eu vi afogarem um senhor. Afundaram a cabeça dele com tudo. E eu disfarçava para não revelar meu truque. Mas depois descobriram e me deram umas pancadas."
Na cela ao lado, estava seu pai. Ildeu escutava os gritos de dor provocados pela tortura. O pai dele tomou choques elétricos, ficou pendurado no "pau-de-arara", levou tapas no ouvido que o deixaram surdo e participou de simulações de fuzilamentos. "Ficou 30 dias incomunicável. Ao todo foram quase três anos preso."
Ildeu permaneceu até altas horas da madrugada, recebendo joelhadas na barriga, presenciando a tortura do pai. Quando chegou em casa, alguns militares à paisana reviravam a casa. "Faziam propostas indecorosas para minha mãe e levaram livros e até cadernos que eu usava no colégio."
Não bastasse isso, foi seguido pela força militar por semanas. A prisão de seu pai o motivou a entrar de vez na luta contra a ditadura, sendo preso mais oito vezes.
Delírio no leito de morte
O episódio mais emblemático aconteceu em 2000 quando viu seu pai já próximo de morrer, gritando frases, como: "Sou comunista, mas não cometi crime algum" e "tenho o direito de me reunir com meus amigos." "Ele morreu achando que estava sendo torturado pelo regime", diz Ildeu.
Narciso, 17 anos de luta
Em 1968, quando a repressão se tornou mais violenta, Narciso Pires ingressou na luta contra o regime militar com 18 anos. Em Apucarana, onde morava, integrou um grupo de estudantes entre 15 e 20 anos que organizava manifestações na cidade. Até que dois membros do grupo foram assassinados pelos militares.
Narciso decidiu vir para Curitiba em 1969 e logo ao começar a faculdade se envolveu com o movimento estudantil. Tudo corria bem até ver os carros do Exército e militares invadindo a pensão onde morava. O coração disparou.
Codinome Valter
Conseguiu uma carona e voltou para Apucarana. De lá rumou para Londrina e com ajuda de um amigo foi para São Paulo. "Fiquei na casa de alguém que não sei quem é. Uma semana e meia depois me levaram até Ourinhos", conta. Ao todo, foram seis meses na clandestinidade, em que adotou o nome de Valter Marcelo Faiçal.
O cerco se fechou em 1975, quando estava novamente em Apucarana e soube que os militares queriam a sua prisão. "Eu fugi. Mas eles prenderam meu irmão, que foi torturado uma noite inteira e libertado. Fizeram isso para aterrorizar minha família e para eu me entregar."
Sem saída, Narciso se apresentou e foi torturado no quartel do Exército. Segundo ele, o torturador chegava a dar aula para os demais presentes sobre como "fazer o serviço". "No final, dava chutes com toda força."
No dia seguinte, ele foi trazido para a capital com os olhos vendados e ficou em um centro clandestino de tortura, onde passou sete dias. "Foram choques elétricos nos órgãos genitais, simulação de fuzilamento, afogamento. Só saí da prisão em 1977." Ao todo, Narciso lutou contra o regime por 17 anos, tempo em que acumulou seis prisões. Hoje, ele é presidente do grupo Tortura Nunca Mais no Paraná.
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