O Ministério da Saúde realizou, nesta terça-feira (28), uma audiência pública com representantes de vários setores da sociedade, da saúde e do Congresso Nacional, com o intuito de discutir e aprimorar a nova nota técnica sobre a atenção aos casos de aborto. Logo no início do evento, o secretário de Atenção Primária do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, ressaltou que o convite para a audiência foi estendido a todos os setores a favor e contra o aborto, e que o espaço estava aberto para o debate sadio e respeitoso.
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O evento, que durou quase 6 horas, foi dividido em três blocos, com a apresentação técnica do ministério, participação dos convidados e perguntas do público que acompanharam a reunião virtualmente. Foram convidadas 24 instituições com posicionamentos diferentes sobre o aborto, segundo a assessoria da pasta.
A segurança no ministério foi reforçada com grades de ferro ao redor do prédio para evitar eventuais protestos durante a audiência, mas não houve registro de incidentes.
No primeiro momento, o Ministério da Saúde explicou os principais pontos do documento, destacou que está em consonância com a legislação brasileira sobre o tema e esclareceu algumas críticas e ataques direcionados por parlamentares e ativistas feministas.
O secretário nacional de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Hélio Angotti Netto, lamentou os ataques e as ofensas que foram direcionados à pasta e ao comitê responsável por elaborar as recomendações. "Essa audiência visa promover o debate pela exposição de diferentes visões, oferecendo transparência e disposição para dialogar. Deve-se contar com a integridade e respeito - não é hora de ataque ou desrespeito - distorções de conteúdo, uso de dados sem respaldo científico e críticas aos elementos que não estão presentes na publicação", ressaltou Angotti Netto na abertura dos trabalhos.
Críticas
A principal acusação de parlamentares de oposição e ativistas pró-aborto contra a nota técnica é a de que ajudaria a promover a perseguição contra mulheres, supostamente exigindo a investigação daquelas que solicitaram o aborto depois de terem sido vítimas de estupro. Eles também criticam o fato de o manual afirmar que não existe "aborto legal".
O secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, rebateu as críticas com números e apresentou o orçamento destinado para proteção da saúde das mulheres. Segundo ele, o investimento foi de R$ 1,8 bilhão no atual governo e, de acordo com os números apresentados na audiência, esse montante representa o dobro do valor repassado na última gestão.
Contrapondo números considerados inflados sobre mortes relacionadas ao aborto, o secretário explicou que, apesar de ser a quinta causa de morte materna, a quantidade de óbitos relacionados ao aborto notificados vem diminuindo no Brasil. Em 2010, foram notificados 79 óbitos maternos por aborto, e o número caiu caiu para 57 em 2020.
De 2010 a 2021, com dados preliminares de 2021, foram notificados 774 óbitos maternos por aborto, segundo levantamento do Ministério da Saúde. A maioria foi ocasionada por formas não especificadas de complicações dos procedimentos de "interrupção de gravidez" ou pelas infecções de trato genitourinário.
O secretário também questionou a afirmação de que, caso o aborto hipoteticamente viesse a ser legalizado no Brasil, iria cair o número de procedimentos no país. Ele mostrou um gráfico com dados do Uruguai, onde o aborto é legalizado. "Com a descriminalização, você aumenta [o número de abortos]. No Uruguai, aumentou ano a ano e foram 10 mil só no ano passado. Não é verdadeiro que quando você legaliza, você diminui", explicou Câmara.
Com relação à crítica de que a nota técnica teria um tom persecutório contra as mulheres vítimas de estupro e incentivaria a investigação contra elas, Câmara mencionou que o documento não obriga o registro do boletim de ocorrência em casos de estupro.
"O registro de ocorrência não é obrigatório e o manual não obriga isso, porque seria um caso de constrangimento e isso está claro no manual. Reforço aqui que não estamos obrigando nada”, reforçou o secretário.
Aborto legal não existe?
Uma das acusações contra a nota técnica - e que gerou várias divergência na audiência pública - é o trecho em que seus autores afirmam que o "aborto legal" não existe, o que existe é o aborto com excludente de ilicitude. A nota técnica reforça: "Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno. O acolhimento da pessoa em situação de aborto previsto em lei deve ser realizado por profissionais habilitados”.
Como explica um editorial recente da Gazeta do Povo, “a expressão já havia se tornado tão corriqueira que não raro era empregada até mesmo por brasileiros que são contrários ao aborto, mas que desconhecem as nuances da redação dos textos legais e, sem má intenção alguma, concluíam que, por não ter punição prevista no Código Penal, o aborto em caso de estupro, risco de vida para a mãe e feto portador de anencefalia não seria crime. Na verdade, o crime continua existindo, mas o legislador julgou adequado não lhe aplicar pena alguma.”
"O aborto não é legal e nem tem que ser estimulado em nosso país ou em qualquer lugar do mundo. O Ministério da Saúde diz que o aborto é crime, e, de fato, é. Isso não está culpando a mulher, mas sim [dizendo] que não deve favorecer esse tipo de ação", ressaltou o defensor público Danilo Almeida, que está respondendo a cinco processos, por tentar barrar o aborto feito criança de 11 anos.
O defensor relembrou o caso recente da atriz Klara Castanho e enalteceu a entrega voluntária da criança para adoção como uma opção para as mulheres que não desejam continuar com a gravidez. "Esse ato deve ser estimulado e deveria ter um cartaz em cada maternidade sobre a entrega legal. Ela fez um ato de amor e foi objeto de críticas", explicou.
Já os defensores do termo "aborto legal" usaram argumentos jurídicos relacionados ao excludente de licitude e os casos permitidos por lei. "Não é o momento de descriminalização ou não, temos que avaliar a parte médica, de acolhimento. O aborto legal existem sim, e faltou um debate mais aprimorado sobre a cartilha nessa audiência. Faltou inúmeras instituições e Ongs que defendem o direito das mulheres", disse a representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, Lia Zanotta.
Direito à vida é inviolável
Valerie Huber, conselheira do ex-presidente dos EUA Donald Trump, participou da audiência e ressaltou o direito inviolável da vida que vale tanto para o Brasil como no mundo. Segundo Valerie, a mulher não pode ser coagida a realizar o aborto sem tomar conhecimento dos riscos psicológicos.
"Não aceitem a falsa narrativa do "aborto legal". O aborto tem que contar com o consentimento da mulher, em casos que a lei permita, e que seja oferecido um ultrassom, para que se saiba as semanas e o completo entendimento do método abortivo e os seus riscos", explicou.
Em relação aos casos de estupro, Valerie ressaltou a necessidade de se ter uma lei para punir crimes sexuais e que garantam a proteção integral de crianças e adolescentes que tenham sido violentados. "É preciso ter uma lei que vá atrás dos estupradores, porque se não continuamos um ciclo de violência", disse.
O ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Ives Gandra Martins Filho reforçou que "o direito à vida é o direito básico e constitui a base de todos os demais direitos - os outros são decorrência, só tem direito quem está vivo."
Martins Filho também lamentou o caso da juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina, que está sendo investigada por defender o bebê que estava no ventre da menina de 11 anos. Ela já estava no sétimo mês de gestação, mas o aborto foi realizado na semana passada. "Já fui membro do CNJ, eu não teria agido diferente, em matéria de direito de vida e família, o juiz tem sim o poder de convencer. Era um caso de feto viável e inexistência de estupro, como pode condenar essa pessoa?", questionou.
Viabilidade do bebê fora do útero
O conceito de viabilidade do bebê apresentado pelo Ministério da Saúde foi questionado por opositores à nota técnica. De acordo com a pasta, do ponto de vista médico, uma gravidez que ultrapassa as 21 semanas e 6 dias já atingiu o estágio chamado de "viabilidade fetal". Como existe a possibilidade de vida fora do útero, a orientação é para que o aborto não seja feito, mesmo nos casos não puníveis pela legislação brasileira, e que ocorra a antecipação do parto. A orientação está em consonância com recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).
Tal ponto sobre a viabilidade reacendeu o caso da menina de 11 anos, que fez o aborto com sete meses de gestação. O MPF recomendou que o hospital realizasse o procedimento “independentemente da idade gestacional e peso fetal”.
A juíza Joana Ribeiro Zimmer, que acompanhou o caso da menina de 11 anos, e tentou evitar o aborto na Justiça catarinense, foi convidada para audiência, mas não compareceu.
O médico e representante da Fundação Oswaldo Cruz, José Paulo Júnior, criticou a viabilidade apresentada pelo Ministério da Saúde e argumentou que um feto com 21 semanas não teria qualidade de vida fora do útero materno. Ele defendeu que nesses casos "a mulher é o centro e a definidora dos seus direitos". Ou seja, na visão dele, cabe somente a mulher o direito de escolha de interromper a gravidez ou não.
Em contrapartida, a bióloga e presidente do Movimento Brasil Sem Aborto, Lenise Garcia, mostrou como se dá o desenvolvimento do feto em cada semana e manifestou apoio ao documento do Ministério da Saúde. "O documento é muito esclarecedor. É momento de exaltar os pontos positivos e o modo como tem sido atacado indevidamente com falsas colocações. Elogio o texto pelo cuidado que é tratado o aborto espontâneo", disse.
Sobre o caso da menina de 11 anos, de Santa Catarina, Lenise ressaltou que o caso precisa ser investigado, porque a vida do bebê foi ceifada por uma irresponsabilidade. "Vamos proteger as nossas adolescentes e educar as nossas crianças, para que não entrem em uma vida sexual precocemente. A mesma mídia que sexualiza as nossas crianças vem depois com o escândalo de crianças grávidas", ressaltou a bióloga.
Congresso tem que legislar sobre o aborto no Brasil
O convite para audiência também foi destinado às comissões e frentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, especialmente aos parlamentares que criticaram o manual, segundo o secretário Raphael Câmara.
A deputada federal Sâmia Bonfim (PSOL-), uma das críticas do manual do Ministério da Saúde, compareceu ao evento, mas alegou não ter sido convidada. Em sua fala, a parlamentar oposicionista fez duras críticas ao ministério e disse que o órgão "foi apossado por negacionistas responsáveis pelo maior genocídio da história". "Isso aqui é um absurdo e fico enojada, aqui se promove a investigação das estupradas e não dos estupradores. E é um evento que propaga mentiras e vamos até o fim para que seja revogado esse documento.", criticou.
Outros parlamentares que participaram da audiência no Ministério da Saúde destacaram a importância e a necessidade do Congresso Nacional deliberar sobre o assunto.
A deputada federal Bia Kicis (PL-RJ) defendeu as investigações no caso da menina de 11 anos em Santa Catarina e destacou que qualquer alteração na lei, referente ao aborto, só pode ser feita pelo Congresso Nacional. "Se for para alterar a legislação, é no Congresso Nacional e me oponho a qualquer decisão do Supremo. É o Legislativo que tem que alterar a lei para mais ou pra menos, e por isso me oponho a qualquer ativismo, vamos debater no Congresso. E fico estarrecida com a mídia que demoniza qualquer um que seja contra o aborto", afirmou a deputada.
O senador Eduardo Girão (Podemos-CE) questionou a polêmica sobre a nota técnica. "É algo que vem esclarecer e colocar pontos importantes da lei brasileira, no caso do estupro e na denúncia do estuprador. Um evento como esse esclarece muita gente e quanto mais debate se realiza, mais vidas serão salvas", ressaltou.
Críticas a audiência e mais esclarecimentos
A representante do Conselho Federal de Medicina (CFM), Giselle Crosara Lettieri, afirmou que o manual foi elaborado com base em pesquisas científicas, mas cobrou a realização de mais audiências para esclarecimentos.
Já o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais criticou a realização do evento. "Esse ato nessa presente audiência é questionável. As relevantes ausências se deve a essa audiência ter sido marcada com sete dias de antecedência e no formato presencial. Faltou ouvirmos professores, associações de pacientes e a OAB, e não pode se encerrar no dia de hoje", disse a defensora pública Nálida Coelho Monte, que representou o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos Gerais.
Na visão da defensora, "o direito da mulher deve prevalecer. A informação da cartilha sobre o "aborto legal" é equivocada. Não há crime e, no caso do aborto, o Código Penal apresenta as hipóteses autorizativas, portanto, não há bem jurídico a ser tutelado".
Ao final da audiência, Raphael Câmara se colocou à disposição para receber todas as sugestões e lamentou a ausência de outros instituições que foram convidadas, mas não compareceram, tais como Conselho Federal de Enfermagem e o Conselho Nacional do Ministério Público.
"Diversas instituições faltaram, e sempre faltam. Quase 900 se inscreveram para falar no STF e só 60 falaram. É um tema impactante, que mexe com paixões com lados diversos, e todos querem falar. Demos espaço ao que achamos que iriam colaborar. Esse é um manual técnico, voltado para os profissionais de saúde, mas o foco é a questão da saúde e a descriminalização não tem lugar nesse manual", ressaltou Câmara.
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