O Ministério da Saúde produziu um "manual" direcionado aos profissionais de saúde, serviços de saúde e aos gestores públicos com as normas técnicas para atendimento às mulheres em relação ao aborto. Alguns dos pontos mais importantes são os esclarecimentos de que não existe “aborto legalizado” no Brasil (o que ocorre é a não punição em três casos), e sobre o conceito de “viabilidade” do bebê. O texto reforça que a conduta dos profissionais de saúde deve ser no sentido de preservar provas do crime de estupro e trata também da proibição para a prática de aborto por meio da telemedicina, o chamado teleaborto.
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Intitulado “Atenção Técnica Para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento”, o documento foi elaborado pela Secretaria de Atenção Primária à Saúde. A Gazeta do Povo teve acesso à primeira versão da nota técnica, mas ela poderá sofrer mudanças. Será realizada uma audiência pública, provavelmente em julho, para discutir o texto e existe a possibilidade de que contribuições e alterações sejam feitas no "manual" após esse evento.
De acordo com o Ministério Saúde, o guia traz “abordagens atualizadas sobre acolhimento e atenção qualificada baseada nas melhores evidências científicas e nas estatísticas mais fidedignas em relação à temática, sempre levando em conta a defesa das vidas materna e fetal e o respeito máximo à legislação vigente no País”.
Além disso, o texto destaca que o objetivo é “fornecer aos profissionais subsídios para que possam oferecer não só cuidado imediato às mulheres em situação de abortamento, mas também na perspectiva da integralidade desse atendimento, disponibilizando às mulheres alternativas contraceptivas e evitando o recurso a abortamentos repetidos. Para mulheres com abortamentos espontâneos, que desejem nova gestação, deve ser garantido atendimento adequado às suas necessidades”, informa o documento.
Entre os pilares do atendimento humanizado que as mulheres devem receber, o "manual" preconiza:
- “Acolhimento e orientação para responder às necessidades de saúde emocional e física das mulheres, além de outras preocupações que possam surgir”;
- “Atenção clínica adequada ao abortamento e suas complicações, segundo referenciais éticos, legais e bioéticos”;
- “Oferecimento de serviços de planejamento familiar às mulheres pós-abortamento, inclusive orientações para aquelas que desejem nova gestação";
- “Integração com outros serviços de promoção à saúde da mulher e de inclusão social às mulheres”.
Legislação e decisão da mulher
O "manual" trata das situações em que ocorre o aborto espontâneo e também sobre o que diz a legislação brasileira para as demais situações. O aborto é crime no Brasil, mas existem três circunstâncias em que não há punição para quem o pratica: risco de morte da mãe; gravidez decorrente de estupro; e anencefalia do bebê - essa possibilidade foi criada após decisão do Supremo Tribunal Federal em 2012.
Dessa forma, ao tratar das questões jurídicas, o documento do Ministério da Saúde reforça que: “Não existe aborto 'legal' como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno. O acolhimento da pessoa em situação de aborto previsto em lei deve ser realizado por profissionais habilitados”.
O "manual" menciona também quais são as medidas legais que devem ser tomadas pelos profissionais de saúde no atendimento da mulher vítima de violência sexual. O primeiro ponto citado é que a autoridade policial deve ser informada por eles sobre o crime sexual. Além disso, o texto afirma que é preciso preservar possíveis evidências materiais do estupro, as quais devem ser entregues à autoridade policial ou aos peritos oficiais. O objetivo é a identificação do autor do crime por meio do material genético.
“Com o objetivo de investigar o estupro e não o aborto, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 2.561/2020, que determina a notificação dos estupros que ensejam interrupção de gravidez, com preservação de material para fins periciais. Importante consignar que essa iniciativa não objetiva verificar se a mulher faltou com a verdade ao noticiar ter engravidado em relação sexual forçada, mas fazer com que o aparato repressivo crie condições para identificar e punir o agressor”, esclarece o documento.
Outra questão é o consentimento da mulher para a realização do procedimento. Se ela não quiser fazer o aborto, a sua vontade deve ser respeitada. Depois do nascimento, se assim desejar, a mulher tem o direito encaminhar a criança para adoção, a chamada adoção legal. Essa conduta é legal.
Nos casos em que a mulher pode morrer por causa da gravidez, a decisão pela interrupção da gravidez caberá ao médico.
O documento do Ministério da Saúde informa que a mulher com 18 anos ou mais deverá tomar a decisão sobre a realização ou não do aborto nos casos citados anteriormente e o que ela decidir deve ser respeitado. Se a gestante for uma adolescente entre 16 e 17 anos, a decisão será tomada em conjunto por ela com seus pais ou representantes legais. Já nos casos de adolescentes com menos de 16 anos, os pais ou responsáveis irão se manifestar por ela. Além disso, nos casos em que a mulher não tiver condições para expressar a sua vontade, o representante legal terá de tomar a decisão.
Viabilidade do bebê com 21 semanas e 6 dias
Outro ponto discutido no documento do Ministério da Saúde diz respeito ao conceito de viabilidade do bebê. De acordo com a pasta, do ponto de vista médico, uma gravidez que ultrapassa as 21 semanas e 6 dias já atingiu o estágio chamado de "viabilidade fetal". Como existe a possibilidade de vida fora do útero, a orientação é para que o aborto não seja feito, mesmo nos casos não puníveis pela legislação brasileira, e que ocorra a antecipação do parto.
Com a gravidez levada até o final e, em caso de necessidade de retirada precoce do feto por motivos de saúde da mãe ou do próprio bebê, o texto destaca que o recém-nascido deve receber todos os cuidados necessários. Depois, caso esse seja o desejo da mãe, o bebê poderá ser encaminhado para a adoção legal.
O texto reforça que toda a tecnologia disponível deve ser assegurada ao bebê prematuro com o objetivo de garantir a sobrevivência dele. Alguns dos critérios que devem ser avaliados pelos médicos em relação à viabilidade fetal são motivo da prematuridade, idade gestacional, presença de CIUR (crescimento intrauterino restrito), uso de corticoide e peso do bebê, entre outros. De acordo com os dados apresentados pelo ministério, de experiências clínicas mundiais, o bebê de menor peso que sobreviveu tinha 212 gramas e nasceu em Singapura.
"Há que se salientar que, sob o ponto de vista médico, não há sentido clínico na realização de aborto com excludente de ilicitude em gestações que ultrapassem 21 semanas e 6 dias. Nesses casos, cuja interface do abortamento toca a da prematuridade e, portanto, alcança o limite da viabilidade fetal, a manutenção da gravidez com eventual doação do bebê após o nascimento é a conduta recomendada. A Coordenação de Saúde das Mulheres (Cosmu) do MS esclarece que o aborto com excludente de ilicitude, previsto no inciso II do art. 128 do Código Penal, não pode ser imposto independentemente da idade gestacional pelo fato da observância do conceito da viabilidade, que é definido como estágio de maturidade fetal alcançado, em determinado período de tempo, em decorrência da evolução do desenvolvimento humano ainda no ambiente intrauterino. Este é utilizado como marco temporal no qual o feto apresenta alguma capacidade de manutenção da vida fora do ambiente uterino, mesmo vindo a nascer precocemente por algum motivo. O período mais precoce desse estádio com a tecnologia atual, inicia-se a partir da 22ª semana gestacional e é denominado de periviabilidade. O nascimento de um ser humano a partir dessa época é conceituada como parto prematuro e não mais como abortamento", informa a nota técnica.
Teleaborto
Com relação ao aborto por telemedicina, também chamado de “telaborto”, o documento é claro ao mencionar que o aborto não pode ser realizado fora do ambiente hospital e sem o acompanhamento presencial do médico.
“O procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez não se reduz ao atendimento remoto, visto que o abortamento envolve um plexo de ações de várias especialidades, contendo, inclusive, procedimento clínico, cuja realização por telemedicina não é autorizada e que deve – obrigatoriamente – ser acompanhado presencialmente por um médico no ambiente hospitalar, onde se tem todos os aparelhos e recursos para salvaguardar a mulher de eventuais intercorrências decorrentes do procedimento em si ou da reação adversa dos medicamentos”.
Essa diretriz responde a iniciativas como a realizada pelo Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (MG), em parceria com o Instituto Anis, que elaborou um manual para que a mulher realizasse o teleaborto com o uso do medicamento abortivo misoprostol, cuja bula prevê manipulação hospitalar, pelos graves efeitos colaterais. O misoprostol provoca a morte e expulsão do feto do corpo da mulher. O acompanhamento médico seria feito remotamente.
Reportagem da Gazeta do Povo já mostrou os riscos do aborto por telemedicina, o qual pode resultar em hemorragia, sequelas graves e até a morte da mulher. Além disso, o próprio Ministério da Saúde já havia se manifestado sobre a questão anteriormente e afirmou que o aborto só pode ser realizado após exame físico, ultrassonografia e internação da mulher em um hospital. Além do ministério, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Conselho Federal Medicina (CFM) também já se posicionaram contra o teleaborto.
Diante disso, em maio de 2021, a Procuradoria da República em Minas Gerais e a Defensoria Nacional dos Direitos Humanos (DNDH) haviam pedido providências contra a cartilha. Mas, em julho de 2021, mesmo diante das recomendações das autoridades e do laboratório que produz o medicamento, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) – órgão do Ministério Público Federal (MPF) – emitiu uma nota técnica contrária ao pedido da Procuradoria de Minas e da DNDH, e a recomendação contra a cartilha foi anulada. Ao mesmo tempo, um procurador do MPF entrou com uma ação civil pública para pedir o fim da Declaração de Óbito de fetos abortados, o que foi visto pelos grupos pró-vida como um meio de facilitar o aborto em qualquer circunstância, sem deixar vestígios.
Objeção de consciência
A nota técnica do Ministério da Saúde trata também da objeção de consciência ao citar a questão da ética profissional. O Código de Ética Médica permite ao médico se ausentar de procedimentos que firam seus valores éticos, desde que a saúde do paciente não seja negligenciada. Em caso de risco de morte da mulher, o médico poderá ter de realizar o aborto, caso não haja outro colega que o faça. O guia traz um trecho do Código de Ética Médica:
“O médico deve exercer a profissão com ampla autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços profissionais a quem ele não deseje, salvo na ausência de outro médico, em casos de urgência, ou quando sua negativa possa trazer danos irreversíveis ao paciente (art. 7º). É seu direito 'indicar o procedimento adequado ao paciente observando as práticas reconhecidamente aceitas e respeitando as normas legais vigentes no país' (art. 21) e 'recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência' (art. 28). É vedado 'descumprir legislação específica nos casos de transplante de órgãos ou tecidos, esterilização, fecundação artificial e abortamento' (art. 43) e 'efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente ou de seu responsável legal, salvo em iminente perigo de vida' (art. 48). Resolução nº 2.232, de 17 de julho de 2019, CFM”.
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