Thelma Alves de Oliveira carrega na bolsa uma miniversão do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Joelma Ambrózio tem um volume ao lado do computador em que trabalha e não empresta para ninguém. Clóvis Boufleur faz coleção de estatutos publicados em diversas partes do Brasil. E Marta Tonin ficou ansiosa ao perceber que na sala em que deu entrevista para a Gazeta do Povo não havia nenhum ECA à mão. Esses quatro personagens são representantes de uma fatia da sociedade que, há 15 anos, briga com unhas e dentes para que sejam cumpridas as determinações daquela que é considerada uma das leis mais modernas já editadas no país. Para muitos, a mais importante depois da Constituição.

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Em 13 de julho de 1990, quando o ECA (Lei n.º 8.069) foi sancionado, o que se dizia era de que se tratava de um texto avançado demais para o Brasil. E era mesmo. O Estatuto, de tão bom, virou uma referência internacional e, literalmente, mexeu com tudo – do vocabulário (botando abaixo expressões como "menor" e "infrator"), passando pelas políticas públicas e escolas. Por acréscimo, alterou a rotina de gente como Thelma, Joelma, Clóvis e Marta.

Eles têm muito em comum. São capazes de citar trechos inteiros do documento – dos mais inspirados aos mais pragmáticos. São eles também que apontam com o dedo os setores da sociedade que volta e meia viram de costas para a questão, como a própria educação. E que bradam em alto e bom som contra um debate da hora: a tentativa de reduzir a maioridade penal para 16 anos. A medida desmontaria o princípio número um do estatuto – o da proteção integral à criança e ao adolescente. Eis o ponto.

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Assombro

Há uma década e meia, a proteção irrestrita determinada pelo ECA encontra detratores. Ouve-se, ainda, que o estatuto "protegeu o bandido" ao livrar os um dia chamados "menores infratores" dos rigores do Código Penal, atribuindo-lhes medidas socioeducativas que lhe garantem liberdade num curto espaço de tempo, mesmo quando o crime é bárbaro. Numa sociedade acostumada a cadeias cheias e a delegar à polícia a segurança e a paz, a substituição do cassetete por medidas pedagógicas – semelhantes às que dariam aos próprios filhos – ainda causa assombro.

"A violência aumentou e parte da sociedade atribui isso ao ECA", constata Thelma Alves de Oliveira, presidente do Instituto de Ação Social do Paraná (Iasp), órgão do governo do estado que administra 18 casas de internação e/ou semiliberdade para mais de 500 adolescentes. "Em certo sentido, o ECA é mais rigoroso que o Código de Direito Penal", afirma a advogada Marta Tonin, conselheira da seção Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), membro do Conselho Nacional dos Direitos da Infância (Conanda) e titular da cadeira de Direito da Criança e do Adolescente nas Faculdades Curitiba. Ela discorre longa e ruidosamente sobre a dificuldade aparentemente crônica de mudar a cultura do reformatório para a do educandário.

É uma luta de 15 anos, desde que o Código do Menor foi despachado e a idéia de proteção integral e prioridade absoluta à criança e ao adolescente ganhou asas, fazendo do estatuto uma lei magna, segundo o procurador de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto, outro entusiasta do Estatuto. Ou extraordinária, um motivo para viver, segundo outros tantos. "Se houver proteção à criança e ao adolescente a própria Constituição se cumpre, tudo se encaixa. É o princípio de tudo", filosofa Marta.

Cultura

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Pode-se dizer, inclusive, que a crença na proteção integral funciona como bom motivo para que cada agente do ECA saia da cama todas as manhãs, disposto a mudar a cultura da punição, tão entranhada no imaginário nacional quanto, a malas tantas, a corrupção. Alterar esse raciocínio é como enfrentar as marés. A jornalista Joelma Ambrózio, 23 anos, membro da Ciranda (Central de Notícias dos Direitos da Infância e da Adolescência), sabe disso. Seu banco de areia é a imprensa. "A gente já sabe. Todo mês de julho, quando o estatuto faz aniversário, é aquele boom de matérias. Depois vem o silêncio. Foi assim com o Estatuto do Idoso", constata. Para ela, a equação é simples: se a imprensa falasse mais no assunto, citasse mais o ECA, tornasse-o familiar, a sociedade iria se mobilizar mais.

A pressão para colocar o ECA nas bocas passa também pela escola. O filósofo Clóvis Boufleur, 36 anos, gestor de Relações Institucionais da Pastoral da Criança, afirma que as instituições de ensino ainda não incorporaram o estatuto. "Minha impressão é que os professores evitam falar nisso porque acham que o ECA será mal interpretado pelos adolescentes, que eles vão jogar contra. É uma pena. O estatuto tem tudo para ganhar eco em todas as disciplinas da escola", diz Clóvis, justificando a preocupação em ver o ECA tão falado quanto a novela das oito.

"A lei trouxe uma visão positiva. Mostra a criança não como um adulto em miniatura, mas como um ser em desenvolvimento que tem todos os seus direitos reservados. Não havia formulação tão bem feita em nenhuma parte do mundo", elogia. Depois daquele 13 de julho, nada foi como antes.