Há cerca de dois meses, os moradores da Vila das Torres, em Curitiba, vivem em constante clima de terror, a ponto de não se sentirem seguros nem mesmo dentro de suas próprias casas. A tranquilidade vem sendo violada justamente por quem deveria proteger a comunidade: a Polícia Militar (PM). Os relatos dão conta de que policiais têm invadido residências sem mandados judiciais, feito revistas e abordagens arbitrárias, e agredido moradores. As denúncias já foram encaminhadas à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e serão levadas ao Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco).
“A orientação é de que os policiais respeitem a constituição”, diz comandante
Responsável pelo policiamento na Vila Torres, o 12.º Batalhão da Polícia Militar informou não ter recebido nenhuma denúncia de moradores relacionada a eventuais excessos cometidos por agentes da corporação. Apesar disso, o comandante da unidade, major Alex Breunig, avalia que é imperativo investigar profundamente a ação dos policiais e que a corporação deve se focar na política de polícia comunitária.
“Não compactuamos com eventuais desvios, tanto que é grande o número de punições e exclusões [de policiais]. Toda a nossa orientação é de que o policial respeite a Constituição. Entrar em residência, só com mandado [de busca] ou em flagrante delito”, disse.
Breunig avalia que a Vila Torres “é uma questão social”, não de polícia. Ele, que atua desde 1992 na região e conhece bem as ruas estreitas e vielas da comunidade, considera que o contexto da vila melhorou nos últimos 20 anos, mas destaca que o local está longe da tranquilidade.
“Todos os elos ali precisam ser fortalecidos: família, educação, saúde, religião. Se isso falhar, vai desembocar tudo na polícia. E nenhuma polícia é capaz de resolver tudo, se os outros elementos da cadeia não funcionarem.”
O policial admite que parte da população da Vila Torres mantem uma animosidade para com a PM, mas garante que o batalhão está de “portas abertas para a comunidade”, inclusive para receber denúncias. “Ainda tem a visão de que o Estado só entra lá para reprimir. Não é verdade. Entra para proteger os moradores. As denúncias podem sempre ser trazidas a nossa unidade, à Corregedoria ou [por meio do canal de telefone] 181”, diz.
“É todo dia. Para eles [policiais], somos todos bandidos só porque moramos na favela. Se cobramos cidadania, é desacato. Se reclamamos, somos presos. Hoje, nós temos mais medo da PM do que do próprio tráfico”, afirmou o líder comunitário Marcos Eriberto dos Santos, o Marcão.
O caso mais recente aconteceu no início da tarde de quarta-feira (13), quando um atendente de telemarketing passava seu horário de almoço no sobrado em que mora com a família. Segundo os moradores, policiais que patrulhavam a rua pediram que ele saísse de casa, para que fosse revistado. Como o rapaz se negou, os PMs teriam invadido a casa e o retirado à força. Houve tumulto e ele e a irmã acabaram presos por desacato.
Um vídeo gravado pelo celular de um morador indica excessos: mostra o rapaz sendo tirado da casa e jogado com violência na viatura por PMs. Entre os gritos, a mãe dele suplica: “Para de bater no meu filho. Pra quê fazer isso com ele?”. O jovem teria sofrido escoriações no pescoço e levado socos no rosto.
A Gazeta do Povo chegou à rua pouco depois das prisões, quando três viaturas ainda estavam no local (uma delas era rebocada). Os policiais estavam sem a “biriba” (tarja de identificação) em suas fardas. Enquanto isso, a mãe dos jovens detidos corria entre vizinhos, para emprestar R$ 500 para pagar um advogado para os filhos.
“Meu filho veio em casa do trabalho para almoçar e é preso. Ele não fez nada. E agora? Ele vai perder o serviço. Quem vai pagar por isso?”, disse com os olhos marejados.
O episódio parece estar longe de ser uma exceção. Moradores garantem que os abusos se tornaram cotidianos. Outra família conta que, também nesta semana, teve a casa invadida arbitrariamente por policiais. A porta metálica da sala ainda está amassada e já não fecha direito. A moradora, uma manicure, diz não ter ideia do que motivou a ação.
“Eu perguntei [o motivo da abordagem] e me chamaram de piranha e de vagabunda. Me mandaram calar a boca, senão poriam droga em mim e me levavam presa”, contou.
Na semana anterior, a casa de outro vizinho teria sido arrombada também em plena luz do dia, quando não havia ninguém na residência. “Reviraram tudo. Falaram que se alguém falasse alguma coisa, eles voltavam depois pra catar”, contou um morador.
Na OAB e no Gaeco
O Conselho da Comunidade na Execução Penal da Região de Curitiba recebeu, nesta semana, o relato de moradores da Vila das Torres, repassou à subseção paranaense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-PR) as denúncias sobre eventuais excessos na ação da PM na Vila das Torres. O caso também será levado ao Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado (Gaeco). “As denúncias apontam uma conduta sistemática da polícia contra moradores, de forma arbitrária e ilegal. Tudo isso configura uma agressão contra a dignidade daquelas pessoas e um atentado à inviolabilidade do lar. É uma violência”, definiu a presidente do conselho, Isabel Kügler Mendes, que também é membro da Coordenação Nacional de Defesa dos Direitos Humanos da OAB.
Moradores gravam abordagens para coibir os abusos
Os celulares com câmera deixaram de ser apenas um aparelho de comunicação da Vila Torres. Tornaram-se também um instrumento de segurança. Os moradores usam os telefones para gravar as abordagens policiais como principal forma de tentar coibir abusos. “A PM chega, a gente já pega o celular pra gravar”, disse o líder comunitário Marcos Eriberto dos Santos.
Uma gravação obtida pela Gazeta do Povo mostra policiais revistando jovens na rua. Uma mulher diz que está filmando para evitar que os PMs forjem um flagrante, plantando drogas nos rapazes. O agente ironiza: “Ah, coitadinho. Não faz nada de errado, né? (...) Nenhum deles tem passagem [pela polícia], né? São tudo gente boa, né?”
Em seguida, após receber ordem de “calar a boca”, a mulher diz que “não deve nada”. “Vai ficar devendo já, já, se continuar com essa boquinha”, ameaça o PM.
Até as crianças usam a estratégia. Quando a Gazeta do Povo esteve na vila, duas meninas procuraram a reportagem para mostrar fotos que elas tiraram durante abordagens da PM. Uma delas, mostrava policiais dentro de uma casa. A outra registrava um policial sem a tarja de identificação. “Foi ele que deu um chute na minha prima. Quando viu que eu tava com o celular, me chamou de vagabunda e disse que ia me prender”, contou a garota, de 12 anos. “Medo eu tenho, mas cansa ver nossos colegas apanhando de graça.”
O choro coletivo da Vila Torres
- Felippe Aníbal
Ainda havia três viaturas e uma dezena de policiais em uma das vielas da Vila Torres, quando o repórter fotográfico Marcelo Andrade e eu chegamos à comunidade. De imediato, chamou-me a atenção o fato de os PMs estarem sem a tarja de identificação afixada na farda. Enquanto eu conversava com um senhor – que relatava que sua filha havia sido chutada por uma policial, por questionar a prisão de um jovem – as equipes policiais deixaram a viela, não sem antes nos encarar profundamente.
Pouco depois, chegou uma manicure. Dizia que teve a casa invadida no início da semana. Quando se lembrou do desespero que a filha sentiu ao ver os policiais entrando, a mulher não conteve as lágrimas. Outras pessoas – mulheres, senhoras, jovens e crianças – se juntavam ao grupo, se sucedendo em histórias que chamavam a atenção pela riqueza de detalhes (que, evidentemente, nos chocavam), além, é claro, pela arbitrariedade policial.
Notei que todos na roda choravam. A mãe do rapaz que teve uma arma apontada contra a cabeça por estar com tênis novos; o senhor que foi revistado por ter aparecido com um carro “melhorzinho”; a adolescente que teve o celular confiscado porque filmava uma abordagem; e as incontáveis moradoras que tiveram as casas invadidas...
Aquele choro coletivo extravasado foi – ao menos para mim – o maior símbolo do grau de impotência que a Vila Torres parece estar enfrentando, sem ter a quem recorrer, a quem gritar, a quem pedir socorro. Agora, que a disputa pelo controle do tráfico parece ter dado uma trégua, os moradores pedem paz à PM.
Rapaz foi confundido com traficante por usar tênis de marca
No último mês, um jovem morador da Vila Torres foi confundido com um traficante, por usar um tênis de marca e uma jaqueta nova. Segundo a mãe do rapaz, ele é funcionário da Caixa Econômica Federal e havia comprado os itens com seus primeiros salários. A mulher afirma que o filho só foi liberado depois que ela mostrou a carteira de trabalho do jovem aos policiais. “Eles [os policiais] diziam: ‘se ‘tá com esse tênis, só pode ser o ‘dono’ [chefe do tráfico]’. Pensam que aqui só tem bandido”, relatou.
Outro morador também foi abordado em casa. O motivo: ele havia trocado de automóvel, por um modelo mais novo. “Fizeram eu pegar os documentos do carro, para provar que não era roubado. Eu acordo todo dia às três da madrugada para fazer salgado. Sou honesto”, disse o senhor.
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