A atuação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), como relator do inquérito sobre um suposto plano de golpe de Estado que envolveria seu próprio assassinato é o ápice da tendência de confusão de papéis institucionais e afronta ao sistema acusatório que se consolida desde 2019 na Corte.
Naquele ano, ao abrir o inquérito das fake news, o Supremo fez uma interpretação criativa de seu regimento interno que lhe permitiu tomar para si próprio o papel de investigar conteúdos da internet críticos a ministros.
O artigo 43 do regimento prevê que investigações podem ser conduzidas pelo próprio STF em casos de ataques contra as dependências físicas do tribunal; com a instauração do inquérito, qualquer tipo de conteúdo digital percebido pelos ministros como fake news ou ameaça a seu trabalho passou a poder se enquadrar nesse artigo.
Em 2020, quando o então procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu a suspensão do inquérito, o próprio Supremo julgou se poderia ou não manter o controle sobre as investigações. O tribunal tomou decisão favorável a si próprio.
Nos anos seguintes, outros inquéritos foram instaurados com o STF figurando como vítima, acusador e juiz ao mesmo tempo, como o dos atos antidemocráticos, em que os ministros passaram a tratar críticas ao tribunal como ameaças à democracia.
Em 2023, o litígio no aeroporto de Roma acrescentou um novo elemento à crescente confusão de papéis no STF, com um caso de suposta agressão física e ofensa contra Alexandre de Moraes sendo tratado como um ataque ao Estado Democrático de Direito. Os ministros, individualmente, passaram a personificar a democracia.
No caso do aeroporto de Roma, o relator é o ministro Dias Toffoli. No inquérito recente sobre a suposta tentativa de golpe, o STF dá um passo a mais na tendência ao conflito de papéis: entrega ao suposto alvo de um plano de homicídio a relatoria de um julgamento no qual é a vítima.
Como relator do caso, Moraes é o responsável direto por autorizar medidas como prisões e buscas, como as que ocorreram na Operação Contragolpe. Além disso, ao redigir os relatórios, coloca-se na esdrúxula situação de descrever, na condição de magistrado, a sua situação no papel de vítima.
Na decisão que autorizou a Operação Contragolpe, Moraes citou a si mesmo 44 vezes, segundo um levantamento da Folha de S.Paulo.
Moraes ainda foi o responsável, na quinta-feira (21), por comandar o interrogatório do ex-tenente-coronel Mauro Cid, um dos participantes do plano do qual o ministro seria alvo.
Juristas e parlamentares criticam acúmulo de funções incompatíveis; STF blinda Moraes
Desde a divulgação da decisão que autorizou a Operação Contragolpe, na terça-feira (19), parlamentares de oposição e juristas têm repetido algo evidente ao senso comum: ninguém pode ser considerado um juiz isento de seus próprios algozes, especialmente quando o julgamento envolve um suposto plano de homicídio. A separação dos papéis de vítima e julgador é um pilar de qualquer sistema jurídico que preze pela imparcialidade.
"Se a hipótese de suspeita de crime envolve homicídio, a pretensa vítima jamais pode figurar como juiz do caso", afirmou o jurista Fabrício Rebelo via X.
O senso comum deve sair derrotado mais uma vez no STF: Moraes já começou a ser blindado novamente por seus colegas, com Gilmar Mendes classificando como "absurda", na quinta-feira (21), a hipótese de afastar Moraes do caso.
"Isso não faz nenhum sentido, porque desde sempre o ministro Moraes tem sido o relator desse processo. E, por isso, passou a ser vítima desses ataques", afirmou Gilmar.
Deltan Dallagnol, ex-deputado federal e mestre em Direito pela Harvard Law School, criticou a declaração de Gilmar em sua conta no X. "Absurdo é juiz confessar que é vítima do crime e ainda assim se achar no direito de julgar seus próprios algozes. Em uma democracia, ninguém pode ser juiz de seu próprio caso, mas na democracia suprema em lua de mel com o governo Lula os ministros podem tudo", disse.
Para o jurista André Marsiglia, toda a discussão sobre a suposta tentativa de golpe se torna secundária diante do grave abuso processual. "Se o Direito ainda vale, antes, o esforço deveria ser explicar vítima e juiz serem o mesmo e a competência jurídica do STF. Isso errado, tudo decorrente disso é errado", disse via X.
A tentativa de Gilmar Mendes de blindar Moraes segue o padrão do STF em outros casos envolvendo abusos do ministro. Em agosto, por exemplo, quando o caso do gabinete paralelo que Moraes criou no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para produzir relatórios contra seus desafetos veio à tona, o presidente do STF, Luís Roberto Barroso, classificou a situação como "tempestade fictícia".
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