O ministro Alexandre de Moraes, do STF, mantém Filipe Martins preso há seis meses sem denúncia.| Foto: Montagem: Antonio Augusto/MPF; Reprodução/Facebook
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A prisão preventiva de Filipe Martins, ex-assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, completa seis meses nesta quinta-feira (8). Mesmo com dois pareceres da Procuradoria-Geral da República (PGR) favoráveis à sua soltura, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), mantém o ex-assessor de Jair Bolsonaro encarcerado desde 8 de fevereiro deste ano.

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Entre pedidos ignorados da defesa, manifestações da PGR desprezadas e solicitações frequentes de novas diligências, Moraes continua cozinhando o ex-assessor no Complexo Médico Penal de Pinhais, no Paraná. Para a defesa, o objetivo do ministro é claro: prolongar a prisão para forçar uma delação sobre a suposta tentativa de golpe de Estado feita por Bolsonaro e seu entorno político.

Desde o começo do processo, há provas claras de que Martins não esteve no voo presidencial aos Estados Unidos do final de dezembro de 2022 que motivou sua prisão. Diversos elementos deixam isso evidente: fotos dele no Brasil no dia da suposta viagem, registros de entrada e saída dos EUA que não condizem com a alegação da Justiça para prendê-lo, além de dados de geolocalização da operadora de telefone mostrando que ele não saiu do país.

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A PGR já havia reconhecido em março que Martins ficou no Brasil no dia do voo presidencial. Voltou a fazê-lo há alguns dias, depois que dados da operadora confirmaram o que já estava provado.

Como já mostrou a Gazeta do Povo em outras reportagens, o processo acumula ilegalidades:

  • Não há denúncia contra Filipe Martins;
  • Moraes inverte o ônus da prova, exigindo que Martins, uma vez preso, prove que não viajou aos EUA;
  • Moraes ignorou as provas apresentadas pela defesa, que são evidências cabais de que Martins não viajou aos EUA;
  • Moraes feriu o princípio da presunção de inocência;
  • Moraes passou por cima das regras para a prisão preventiva previstas na legislação brasileira, prolongando o tempo da medida de forma injustificável, mesmo se a prisão fosse legal;
  • Moraes ignorou o primeiro parecer da PGR a favor da liberação de Martins e ainda não agiu em relação ao segundo.

Ainda que Martins tivesse feito a viagem aos EUA, a própria justificativa para que isso motive uma prisão preventiva é espúria: no raciocínio criado pelo ministro, a suposta participação no voo mostraria que há risco da fuga de Martins para outro país; com isso, seria necessário prendê-lo de forma cautelar.

As regras para a prisão preventiva na legislação brasileira preveem que a Polícia Federal tem 15 dias, prorrogáveis por mais 15, para encerrar o inquérito de alguém preso preventivamente, e o Ministério Público tem mais cinco dias para oferecer denúncia.

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"Ainda que a jurisprudência admita certa flexibilidade, mais de 100 dias de investigação não encerrada, mantendo alguém preso, foge de qualquer mínima legalidade", já afirmou ao jornal Rodrigo Chemim, doutor em Direito de Estado.

Juristas avaliam se caso de Filipe Martins pode ser considerado tortura

Elementos como o acúmulo de abusos contra o devido processo legal, a ojeriza pública de Moraes a apoiadores de Bolsonaro, a demora no processo e os diversos pedidos de novas diligências geram na defesa suspeitas de tortura psicológica para forçar uma delação. A tortura é um crime inafiançável no Brasil.

Dois juristas consultados pela Gazeta do Povo consideram que os abusos de Moraes no processo contra Filipe Martins são evidentes e graves. Questionados pela reportagem se o caso poderia ser enquadrado no crime de tortura, eles divergem entre si.

Para Fabricio Rebelo, associar os atos de Moraes ao crime de tortura seria exagerado. Ele diz que os crimes da Lei de Tortura, promulgada em 1997, são caracterizados por violência ou grave ameaça com práticas que não estejam previstas em lei. Para Rebelo, ainda que Moraes esteja agindo ilegalmente, a prisão preventiva em si mesma é um ato legal.

"No caso de Filipe Martins, os atos estão previstos, como a prisão preventiva, e o que aparenta existir é um grande abuso em sua prática, como ocorre quando alguém é mantido preso preventivamente por um período alongado, sem que sequer tenha havido denúncia", afirma.

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Ainda assim, ele destaca a gravidade do que está sendo feito contra o ex-assessor de Bolsonaro. "No Direito Penal brasileiro, o prazo para oferecimento de denúncia quando o réu está preso é de cinco dias, a partir de quando o Ministério Público recebe o inquérito, com possibilidades muito limitadas de dilatação. Não há como compatibilizar com os regramentos processuais alguém ficar detido por seis meses sem denúncia, ainda mais quando a própria PGR já se manifestou pela soltura", afirma.

Já para a consultora jurídica Katia Magalhães, o caso se enquadra na Lei de Tortura. Ela recorda que a lei caracteriza como tortura "submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventiva".

Para Katia, "o intenso sofrimento físico e moral ao qual tem sido exposto Martins, sob o poder ou a autoridade de Moraes, pode ser enxergado como forma de imposição de um 'castigo pessoal'".

"A presunção de um intuito personalístico da punição decorre de palavras do próprio ministro Moraes, ao ter alardeado, no dia 14 de dezembro de 2022, que ainda havia 'muita gente para prender'. Ora, ao ter violado seus deveres de isenção e imparcialidade para anunciar a realização de prisões futuras, o juiz se mostrou publicamente disposto a perseguir e punir figuras enxergadas como suas inimigas pessoais", comenta.

Também comete o crime de tortura, conforme a lei, quem impõe sofrimento "por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal".

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A ilegalidade da medida contra Martins, para Katia, está evidente. "A prisão de Filipe Martins foi manifestamente inconstitucional, por ter sido efetuada por juiz incompetente e sem indícios materiais da prática de crimes definidos em lei", diz, destacando o fato de que Moraes nem sequer observou "o disposto na nova redação do artigo 316 do CPP, que exige uma revisão da prisão preventiva, pelo juiz, a cada 90 dias".

Além disso, recorda a jurista, a defesa já apresentou todos os documentos para contrapor a única acusação alegada contra ele, e ignorar essas provas é mais um abuso de autoridade por parte de Moraes que demonstra a ilegalidade das medidas adotadas.

Para Katia, a prisão de Martins "já pode ser classificada como um constrangimento ilegal, que, por óbvio, ocasiona sofrimento ao encarcerado, tanto no plano físico quanto no emocional". "Só não se pode afirmar, em termos objetivos, que a conduta do ministro Moraes tenha se destinado à obtenção de uma confissão de Martins", ressalva.

Ainda assim, o caso de Martins se enquadra na Lei de Tortura, na visão da jurista, por envolver elementos como a relação de poder e autoridade de Moraes sobre Martins e a violência inerente a encarcerar alguém de forma arbitrária.

Ainda há, segundo ela, "a possível intenção de impor ao prisioneiro uma punição, não decorrente das normas legais, e sim como forma de castigar alguém enxergado, pela autoridade, como um desafeto pessoal", o que fica evidente pelo fato de que "a própria PGR já reconheceu a regularidade das provas apresentadas por Martins, tendo emitido um parecer favorável à sua soltura".

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"Em mais uma falta grave aos seus deveres como juiz, Moraes sequer apreciou a opinião da procuradoria. A cada dia de recusa à apreciação das evidências e do parecer da PGR, o próprio ministro corrobora a caracterização da prisão de Martins como uma forma de 'tortura-castigo'", conclui.

Histórico do caso

Veja o histórico completo do caso da prisão preventiva de Filipe Martins, que completa seis meses:

  • Em fevereiro de 2024, a Polícia Federal prendeu preventivamente Filipe Martins durante a Operação Tempus Veritatis, que investigava a ligação dele e de outras figuras públicas com os atos de 8 de janeiro de 2023 e uma suposta tentativa de golpe de Estado.
  • A alegação da PF para prendê-lo foi que seu nome constava na lista de passageiros que viajaram em um voo presidencial com Bolsonaro no dia 30 de dezembro de 2022 rumo a Orlando, nos Estados Unidos, o que indicaria risco de fuga.
  • A defesa de Martins solicitou a revogação da prisão preventiva no dia seguinte à medida, alegando falta de provas. Cinco dias depois, Moraes negou o pedido.
  • A defesa entrou com nova solicitação em 19 de fevereiro, mostrando documentos que atestavam sua permanência no Brasil, como passagens aéreas de Brasília para Curitiba em nome dele e da mulher, além de comprovantes das bagagens que despacharam, confirmação da companhia aérea, e fotos do casal na região de Ponta Grossa (PR).
  • Moraes ignorou as provas e, em 22 de fevereiro, ordenou a transferência de Martins para o Complexo Médico Penal (CMP) em Pinhais, no Paraná. Advogados e familiares não foram informados a respeito da transferência antes de que ela ocorresse, e começaram a suspeitar de uma tentativa de forçar delação.
  • No dia 29 de fevereiro de 2024, a defesa de Martins apresentou novos documentos comprovando sua permanência no Brasil durante o período em que supostamente teria deixado o país.
  • Em 6 de março de 2024, a Procuradoria-Geral da República (PGR) emitiu parecer favorável à liberdade provisória de Martins, reconhecendo que não havia sinais de risco de fuga e que a decisão inicial pela prisão já poderia ser reavaliada.
  • Em 28 de março – três semanas depois do parecer da PGR –, em decisão que manteve Martins na prisão, Moraes alegou dúvidas sobre o itinerário do ex-assessor de Bolsonaro. Com isso, o ministro admitia que o principal motivo para a decretação da prisão preventiva era duvidoso – o que, por si só, já tornaria a prisão ilegal.
  • No começo de abril, quando já estava próximo de completar dois meses na prisão, o ex-assessor de Bolsonaro escreveu uma carta a um amigo vazada para a imprensa com os dizeres: "Não delatei. Não delatarei. Porque não há o que delatar".
  • Em maio, Moraes rejeitou mais um pedido de soltura de Martins, alegando diligências pendentes da Polícia Federal. A defesa reafirmou que o ministro simplesmente ignora as provas apresentadas.
  • Em 20 de maio de 2024, a defesa de Martins divulgou uma nota pública acusando Moraes de cometer ilegalidades e de coagir Martins a produzir provas contra si mesmo. A defesa também entrou com um agravo regimental no STF contra a decisão de manutenção da prisão, argumentando que a medida é injusta e abusiva, e apontando as diversas ilegalidades do processo.
  • No fim de maio, Moraes acionou o Ministério da Justiça e Segurança Pública para pedir informações ao governo americano sobre as entradas e saídas de Filipe Martins nos EUA, o que poderia confirmar em definitivo que o ex-assessor da Presidência não fez a viagem do dia 30/12/2022. O pedido ocorreu, contudo, quase dois meses depois de a PGR recomendar essa solicitação.
  • No começo de junho, o governo americano confirmou que Filipe Martins não viajou aos EUA.
  • No dia 26 de junho, Moraes intimou Uber, iFood, BMG, Nubank e Tim a fornecerem dados sobre o uso que Filipe Martins fez de seus serviços em dezembro de 2022.
  • No começo de julho, a Tim confirmou com dados de geolocalização que Filipe Martins estava no Brasil.
  • No começo de agosto, a PGR recomendou novamente a liberação de Martins.