Em 2004, o oleiro Cléverson Aparecido de Oliveira, 17 anos, morador do bairro Fazenda Iguaçu, em Fazenda Rio Grande, região metropolitana de Curitiba, viu o pai ter um ataque de cãibras nas pernas e morrer afogado na cava (lago artificial formado pela extração de areia ou argila) ao lado de casa. Oito anos antes, um primo já havia falecido da mesma forma. No ano passado, se não fosse um amigo salvá-lo também durante um súbito de cãibras enquanto nadava, o próprio Cléverson estaria na estatística do Corpo de Bombeiros, que mostra que num período de dez anos, de janeiro de 1998 a janeiro de 2007, 791 pessoas morreram afogadas em rios e cavas de Curitiba e região metropolitana. Metade desse número refere-se apenas a mortes em cavas. Em fevereiro, foram sete mortes desse gênero.
O número total de afogamentos é apenas 20% menor do que as aproximadamente mil mortes geradas no conflito entre o grupo armado islâmico Hezbollah e o exército de Israel, no Líbano, em 2006. Bem como em relação à passagem do Furacão Katrina por Nova Orleans, nos Estados Unidos, um ano antes.
Mesmo com esse histórico familiar, a cava ao lado de casa ainda é a principal opção de diversão de Cléverson. No dia em que a reportagem o encontrou, ele nadava em um grupo de oito pessoas, entre amigos e irmãos, incluindo o mais novo, de dez anos. "Gosto de jogar futebol, mas a cancha mais perto é a seis quilômetros daqui", revela, sobre o local onde mora. Portanto, a insistência de Cléverson em ir para a cava tem um porquê: a falta de infra-estrutura de lazer na periferia, que empurra jovens de classe baixa a esses locais e, conseqüentemente, à morte.
O tenente Leonardo Mendes dos Santos, relações-públicas do Corpo de Bombeiros, acredita que a ligação dessas mortes com a falta de opções de lazer na periferia é intrínseca. E que pouco é feito em termos de políticas públicas porque os casos são pontuais. "Acontece todo ano, mas não é como em casos de mortes coletivas, que chocam mais, como em naufrágios ou incêndios", compara. O perfil dessas vítimas dá bem a noção disso: 90% são homens, idade entre 15 e 35 anos, classe baixa e que desconhecem totalmente os riscos de nadar em cavas e rios. "Por serem jovens e no vigor da idade, eles até se arriscam mais, indo para o fundo", aponta o tenente.
Num ano em que trabalhou no 6.° Grupamento dos Bombeiros, responsável pela região metropolitana, Santos diz ter participado do recolhimento de dez cadávares em cavas. "Como são regiões distantes e as pessoas demoram a chamar os bombeiros, é muito difícil prestar o socorro. Quando chegamos, a pessoa já morreu", explica.
Para o engenheiro ambiental e urbanista Carlos Mello Garcias, diretor do curso de Engenharia Ambiental da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e especialista em projetos de recuperação de áreas urbanas degradas, as cavas são crimes ambientais, decorrentes da exploração desregrada de areia e argila que já houve no estado, e que geram crimes sociais. "Essas mortes são o reflexo da falta de atenção à demanda de lazer público que é clara. É um crime social que tem origem na exclusão", afirma.
Na opinião de Garcias, o poder público, com o apoio de outras entidades, como organizações não-governamentais, deveria assumir a responsabilidade de áreas onde existem cavas e transformá-las em opções viáveis e seguras de lazer. Porém a realidade é outra.
A coordenadora de Planejamento do Uso e Ocupação do Solo da Coordenação da Região Metropolitana de Curitiba (Comec), a arquiteta Maria Luiza Malucelli Araújo, afirma que a entidade conta com projetos de implantação de parques nesses locais. Entretanto, o intuito esbarra na falta de dinheiro. "Isso depende de recursos e os municípios da região metropolitana não têm condições de bancar essa infra-estrutura", salienta.
Enquanto isso, medidas paliativas, como campanhas educativas e, no caso de Curitiba, implantação de placas nas áreas próximas de cavas, são adotadas. Mas com pouco efeito. "Só as campanhas não são suficientes porque as pessoas sempre pensam que não vai acontecer com elas", ressalta o tenente Santos.