A pressão da sociedade por mais rigor na punição aos crimes de trânsito tem influenciado fortemente os julgamentos de motoristas que causam acidentes com mortes. São cada vez mais comuns nos tribunais os casos de condutores condenados por homicídio doloso, quando se considera que houve intenção de matar. Nessa situação, o réu vai a júri popular e as penas aplicadas a ele são mais duras do que as previstas no Código de Trânsito Brasileiro (CTB) para óbitos causados por colisões ou atropelamentos.
Em julho de 2012, por exemplo, um motorista de Cabo Frio (RJ) foi condenado pela Justiça a oito anos e nove meses de prisão em regime fechado por homicídio doloso duplamente qualificado. Segundo os autos, ele dirigia alcoolizado e em alta velocidade quando bateu em outro veículo em uma rodovia estadual. Mãe e filha morreram no acidente.
Mas decisões como essa têm causado controvérsia no meio jurídico. A principal pergunta é como é possível presumir que motoristas embriagados ou que dirigiam acima dos limites de velocidade tiveram a intenção de causar um acidente e, consequentemente, uma morte?
Entendimento
A subjetividade da questão vem sendo respondida aos poucos por meio de pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal (STF), mas as opiniões também são divergentes na mais alta corte do país. Já há consenso, por exemplo, de que mortes causadas em "rachas" devem ser tratadas como homicídios com dolo eventual (quando o condutor assume o risco pelo acidente). A constatação foi reforçada durante o julgamento de um habeas corpus, em 2011.
No mesmo ano, porém, o STF alterou a punição dada a um motorista acusado de homicídio doloso para culposo (quando não há intenção de matar). Ficou comprovado que o condutor estava embriagado no momento do acidente, mas, para o tribunal, o réu não bebeu com o objetivo de matar alguém. Mesmo assim, casos semelhantes, em que o motorista estava alcoolizado, têm sido levados a júri popular no interior do país (veja box nesta página).
Para juristas e advogados, a falta de uma "fórmula" para diferenciar dolo e culpa tem contribuído para que motoristas sejam denunciados por dolo eventual, a fim de se buscar punições mais severas. "Tratar hipoteticamente o que é dolo e culpa dentro de uma sala de aula é fácil. Mas, em um caso concreto, existem complicadores. O primeiro é como entrar na cabeça do motorista para saber se ele quis assumir o resultado ou não. É preciso analisar todas as circunstâncias que envolvem cada fato", afirma o promotor de justiça Cássio Honorato, de Colombo.
Propostas em Brasília seguem direções opostas
A indefinição sobre a aplicação de dolo ou culpa nos homicídios de trânsito motivou a apresentação de diferentes projetos de lei no Congresso Nacional. Uma das propostas, de autoria do deputado federal Gonzaga Patriota (PSB-PE), quer aumentar a pena dos crimes culposos.
Pelo texto, o dolo eventual (quando não há intenção de matar, mas se assume o risco) é eliminado. Assim, o crime culposo passa a valer para casos em que o motorista, além de agir por imprudência, assume o risco de causar uma lesão ou morte. No Código Penal atual, além da imprudência, a negligência ou a imperícia também são fatores usados para qualificar um crime como culposo. A proposta do deputado descarta esses outros dois fatores.
Segundo Patriota, a intenção é aproximar as penas de crimes culposos e dolosos, e uniformizar a maneira com que os homicídios no trânsito são tratados por juízes e promotores. O projeto aguarda parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara.
Culpa gravíssima
A reforma do Código Penal, que tramita no Senado, muda a definição de homicídio por dolo eventual e cria uma nova modalidade: a culpa gravíssima. O dolo eventual ficaria restrito a casos em que o agente do crime consente ou aceita o resultado do ato. Nos casos em que essa situação não fique caracterizada, seria então utilizada a figura da culpa gravíssima, com penas de quatro a oito anos de prisão, maiores do que as previstas para o homicídio culposo. Mas, nesse caso, o agente não seria levado a júri popular.
OpiniãoAristocráticos ao volanteLuiz Flávio Gomes, jurista e membro da comissão que elaborou o projeto do novo Código Penal.
Os homicídios no trânsito hoje constituem um massacre nacional indiscutível. O governo reage com novas leis, sempre mais duras. Dessa maneira, ilude a população dizendo que vai resolver o problema, o que não acontece. A lei, por si só, não altera a realidade.
Isso tudo dá uma sensação de impotência muito grande, tanto para o legislador quanto para a sociedade como um todo. E essa sensação gera uma reação, que às vezes chega à prepotência, como chamar de crime doloso o que não é doloso. Isso está se passando com muitos casos.
Quando é doloso, tem que ser mesmo punido gravemente, inclusive com cadeia. Agora, quando existe uma prepotência, um excesso, aí podemos estar diante de um erro judicial grave. Isso decorre porque queremos uma resposta, que é dada em parte pelos delegados e promotores. A sociedade não suporta mais tantos homicídios.
Mas, indo mais a fundo, por de trás de tudo isso está o fato de que, no Brasil, temos ojeriza em respeitar as leis. Tendemos a não respeitar as regras. Não respeitamos limite de velocidade, sinal vermelho. Ao volante, as pessoas se sentem aristocráticas.
A Europa descobriu que a fórmula para se resolver o problema da violência no trânsito é unir educação, engenharia, fiscalização, noções de primeiros socorros e punição. No Brasil, além de não ser observada essa fórmula, temos como agravante esse problema cultural. O brasileiro ainda acha que, depois de beber, vai poder dirigir por aí, sem qualquer impedimento.