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O Ministério Público de Pernambuco (MPPE) resolveu recomendar que as polícias Civil e Militar não interfiram na 16ª Marcha da Maconha que deve acontecer no Recife, neste sábado (20), para evitar “constrangimentos” aos participantes da marcha “sob a justificativa de conduta de incitação e/ou apologia ao crime”.
De acordo com o próprio documento do MPPE, publicado em seu Diário Oficial eletrônico, na última terça-feira (16), o pedido é uma reação a uma operação policial deflagrada durante o carnaval contra um grupo de ativistas que estava promovendo e distribuindo kits com utensílios para o uso “responsável” de drogas ilícitas.
A operação foi realizada pela Polícia Civil após denúncias e resultou na apreensão do material que estava sendo distribuído e no fechamento, por um dia, da “Casa de Redução de Danos” mantida por ativistas pró-legalização, em Olinda (PE). A Marcha da Maconha é organizada pelo mesmo grupo.
A recomendação do MPPE em relação à Marcha da Maconha foi assinada por um grupo de promotores do Centro de Apoio Operacional (CAO) Defesa Social e Controle Externo da Atividade Policial.
Na recomendação, os promotores utilizaram entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), de 2011, em que a Corte confirmou a legitimidade da Marcha da Maconha, desde que a manifestação se proponha apenas a discutir a possibilidade de descriminalização das drogas – sem fazer apologia ou incentivo ao uso de qualquer droga.
No documento, os promotores pedem às polícias “a observância estrita do eventual uso da força, baseada nos princípios da legalidade, necessidade, razoabilidade e proporcionalidade” para “evitar a utilização de métodos que provoquem constrangimento e/ou sofrimento desnecessário".
O pedido foi direcionado ao comandante geral da Polícia Militar, coronel Tibério César do Santos, e à chefe da Polícia Civil de Pernambuco, delegada Simone Aguiar.
O MPPE também pediu a fixação da recomendação em quadro de aviso de todas as delegacias da capital e a divulgação do pedido no Boletim Geral da Corporação.
Medida às avessas e desnecessária
Uma das recomendações feitas pelo MPPE chama atenção pelo detalhamento até de como os policiais devem estar fardados. Os promotores recomendam “o uso adequado dos cadarços de identificação, em local visível no uniforme operacional e nos coletes balísticos”.
A recomendação deu margem a interpretações ambíguas, já que o uso do uniforme é praxe. Ao mesmo tempo, tenta blindar o evento contra a eventual presença de agentes infiltrados disfarçados, estratégia usada pela polícia para evitar tumulto mediante a prévia identificação de situações potencialmente perigosas, como o início de uma briga ou a comercialização de drogas ilícitas.
O advogado especialista em Direito Constitucional, Adriano Klafke, considerou a recomendação “equivocada”, apesar de o Ministério Público “ter base legal” para emitir quaisquer recomendações.
“Parece, às vezes, haver algum preconceito por parte de alguns órgãos de controle no sentido de entender que a Polícia sempre está errada e agindo de má-fé", afirmou. “A meu ver, a recomendação (sobre os uniformes) presume uma ação ilícita da própria polícia, o que não ocorre nesta situação. A diferença é que esse pessoal que atua infiltrado não se envolve em ações de emprego de força”, além disso, “a atuação da polícia disfarçada visa preservar a integridade de todos, inclusive das pessoas que participam da manifestação”, explica o advogado.
O advogado Fernando Lobo também não vê o cometimento de ilegalidade por parte do MPPE por se tratar de uma recomendação, mas considera a medida “às avessas e desnecessária”.
De acordo com Lobo, “o fardamento das polícias já obedece a um padrão sendo desnecessária a intervenção do Ministério Público”. O advogado também considera que a recomendação pode ser entendida como um “erro grave”, no caso de ter embutida a intenção de impedir a ação de policiais disfarçados.
A Gazeta do Povo procurou o MPPE e os comandos das polícias Militar e Civil para saber até que ponto a recomendação interfere no trabalho policial e em quais situações os agentes poderiam agir, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria. O jornal permanece aberto para quaisquer esclarecimentos dos promotores.
O jornal também entrou em contato com a Secretaria de Defesa Social (SDS) do estado por diversas vezes para saber qual seria o encaminhamento dado à recomendação, mas também não obteve resposta até o fechamento desta matéria.
As polícias têm até esta sexta-feira (19) para emitir um parecer sobre o pedido do Ministério Público.
Marcha da Maconha no Recife em 2022
Durante a edição da Marcha da Maconha do ano passado, os manifestantes se concentraram em frente ao Quartel do Comando da Polícia Militar, no centro da cidade, e marcharam pelas ruas da capital sob o tema: “Aperte o verde contra o fascismo: A nossa luta é pelo bem viver”.
A concentração em frente ao Comando da PM foi vista como uma afronta à instituição. Na época, o deputado estadual coronel Alberto Feitosa (PL-PE) criticou a manifestação e cobrou uma ação da polícia contra o movimento.
“Há imagens mostrando manifestantes consumindo drogas tranquilamente nas ruas. Manifestantes da Marcha da Maconha fazem uso de drogas em frente ao Quartel do Comando da Polícia Militar, com a anuência e proteção do Governador, isso é um absurdo e uma afronta à lei e a ordem”, disse o parlamentar.
“Redução de danos”
Durante o carnaval deste ano, a polícia civil fechou a “Casa de Redução de Danos” em Olinda (PE). Trata-se de um espaço que, segundo denúncias, era usado para fazer apologia ao uso de drogas ilícitas.
O projeto é uma iniciativa da Escola Livre de Redução de Danos (ELRD), coordenada pelas ativistas Priscilla Gadelha e Ingrid Farias.
O funcionamento do espaço foi anunciado pela própria ELRD através das redes sociais. O grupo lançou a campanha “Fique suave no Carnaval”, que consistia na distribuição de “kits de redução de danos” contendo utensílios higienizados para uso de drogas, como cartões, piteiras, sedas, canudos para aspirar cocaína e até protetor solar.
Ao realizar diligência na “Casa de Redução de Danos”, onde estava sendo distribuído o material, no dia 20 de fevereiro deste ano, a polícia apreendeu o material. Apesar de não ter sido relatada a presença de drogas no local, a Lei 11.343/06 prevê pena de prisão de até 3 anos para quem “induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga”.
No mesmo dia da apreensão, as coordenadoras do espaço publicaram um vídeo nas redes sociais reclamando da ação policial e convidaram outras entidades para se juntarem à causa. Segundo as ativistas, o grupo não faz apologia às drogas, mas “ao cuidado” e à “saúde”. No vídeo, Priscilla Gadelha e Ingrid Farias ainda se dizem vítimas de uma campanha que tenta criminalizar a “redução de danos”.
O espaço mantido pelo grupo voltou a funcionar normalmente no dia seguinte.