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Pesquisas da Universidade Federal de Sergipe (UFS) são alvo de investigação do MPF.
Pesquisas da Universidade Federal de Sergipe (UFS) são alvo de investigação do MPF.| Foto: Reprodução

O núcleo de combate à corrupção do Ministério Público Federal em Sergipe (MPF-SE) investiga denúncia de irregularidades na utilização e distribuição de recursos recebidos pela Universidade Federal de Sergipe (UFS) para o enfrentamento da pandemia da Covid-19. Cerca de R$ 10 milhões teriam sido aplicados para financiar projetos sem edital ou licitação, e destinados a outros fins, como o pagamento de professores ligados à Reitoria.

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A denúncia partiu de um grupo de professores liderado por Denise Leal Albano, docente do curso de Direito da UFS, que concorreu à Reitoria da instituição em 2020. Integram o grupo Bracilene Araújo, doutora em bioquímica, professora do departamento de fisiologia e ex-presidente da Associação dos Docentes da Universidade Federal de Sergipe (ADUFS); e Rodorval Ramalho, professor do departamento de ciências sociais e da pós-graduação em ciências da religião da UFS.

Denise Leal, que é especialista em Direito Penal e pesquisadora da temática de crime organizado e corrupção, decidiu analisar dados de pesquisas que teriam sido realizadas pela UFS em parceria com a Universidade da Fronteira Sul (UFFS), de Santa Catarina, e que foram utilizadas como referência pelo Ministério Público de Sergipe (MP-SE) quando recomendou que o governo do estado endurecesse as medidas de restrição para combater a Covid-19, como a realização de toque de recolher e lockdown.

A partir disso, ela analisou diversos relatórios emitidos pela Controladoria-Geral da União (CGU) e Tribunal de Contas da União (TCU), que apontavam uma série de irregularidades na UFS, como contas reprovadas e multas por problemas em licitação e por falta de transparência. Denise Leal conta que encaminhou uma série de pedidos de informações para os setores da universidade envolvidos e a maioria deles se negou a responder. A Fundação de Apoio à Pesquisa e Extensão de Sergipe (Fapese), que gerencia a maioria dos projetos, não deu resposta alguma. “As respostas só começaram a vir quando invoquei a Lei de Acesso à Informação, mecanismo que obriga órgãos públicos a responder qualquer solicitação de informação no prazo de 20 dias. Mesmo assim, essas respostas eram contraditórias, evasivas, e muitas questões não eram esclarecidas”, diz Denise.

Municiada desses dados, Denise fez uma extensa investigação e apresentou documentos ao MPF para defender que, dos milhões arrecadados pela instituição – como a doação do Ministério Público do Trabalho de Sergipe (MPT-SE), no valor de R$1,1 milhão, para a instituição investir na compra de testes; e o repasse feito pelo Ministério da Educação (MEC), cerca de R$ 2,5 milhões, também para aumentar a realização de testes nos dois hospitais universitários ligados à UFS – menos de R$ 15 mil foram aplicados para o fim proposto.

Um relatório contábil independente, solicitado pelo grupo, produzido após análise dos contratos desses projetos pelo escritório Contábil Orcosil, aponta diversas irregularidades, entre elas a utilização fora do prazo da Lei nº 13.979/2020, que dispensou a realização de licitações diante da pandemia de Covid-19, mas perdeu seu efeito em dezembro de 2020; contratos com data de orçamento posterior ao da assinatura, levantando a suspeita de que foram ajustados após surgirem questionamentos dos custos; a ausência de fiscais e gestores dos contratos e falta de transparência na forma como foram realizadas as contratações. Segundo o relatório, caso sejam constatadas as ilegalidades, os envolvidos podem ser obrigados a ressarcir os valores aos cofres públicos.

A denúncia foi recebida pelo MPF em 12 de setembro de 2021. Foram solicitadas informações da UFS e da Fapese. O MPF também enviou cópia da representação ao TCU para análise e eventual apuração.

EPI Sergipe

Um dos projetos citados na denúncia é a pesquisa epidemiológica “EPI Sergipe”. Coordenada por Adriano Antunes Araújo, diretor do Centro de Ciências Biológicas e da Saúde (CCBS) e que trabalhou para a eleição do atual reitor em 2020, a EPI foi anunciada em maio de 2020 como uma ferramenta para orientar os processos de tomada de decisão do governo de Sergipe. Foram recebidos por meio de um convênio da Fapese, junto à Secretaria Estadual da Saúde (SES), R$ 4,6 milhões, a maior parte por meio de emenda parlamentar de autoria do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE).

A proposta era analisar as taxas de infecção pelo coronavírus em municípios do estado, verificar os impactos socioeconômicos da pandemia e os impactos sobre populações vulneráveis. No entanto, não foram publicados editais e nem os critérios para escolha dos participantes relativos a esse milionário financiamento. Além disso, outra equipe da universidade realizava projeto de pesquisa parecido.

“Por vários meses insistimos em buscar informações sobre o nome do coordenador desse projeto no comitê de ética em pesquisa com seres humanos da UFS e a data da sua aprovação, mas houve reiteradas recusas do presidente do comitê em prestar tais informações. Só foi possível obtê-las recorrendo a Brasília [ao Conep]”, afirma Denise. De acordo com a denúncia em mãos do MPF, há procedimentos inadequados e poucas informações sobre o que foi efetivamente realizado.

Um exemplo seria a apresentação de nomes diferentes para a função de “pesquisador responsável”. Nos registros da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), instituição que atua na regulação da ética em projetos de pesquisa envolvendo seres humanos, consta como pesquisador responsável o ex-reitor e atual pró-reitor, Lucindo Quintans. Na Fapese, por outro lado, a mesma pesquisa aparece sob a responsabilidade de Adriano Antunes Araújo.

Chama a atenção a participação no projeto de professoras com estreitos vínculos com o pró-reitor: a esposa dele e a professora voluntária que ele indicou para assumir suas turmas, que passou a ministrar as aulas em seu lugar. Não foi feito processo de seleção para a escolha dessas docentes.

A EPI-Sergipe também contratou a “Mandacaru Consultoria” no valor de R$ 31 mil para prestar assessoria em um braço do levantamento, coordenado pelo professor de Economia Luiz Carlos de Santana Ribeiro. O contrato foi assinado pelo presidente da Fapese, Carlos Alexandre Garcia, e também foi dispensado de licitação. A dona da empresa “Mandacaru Consultoria”, que na verdade é uma MEI registrada em São Paulo, é Vânia Lourenço dos Santos. Não há sites ou redes sociais da Mandacaru Consultoria e não se sabe como a empresa conseguiu firmar essa parceria.

Além disso, estão no rol de documentos enviados ao MPF contratos de prestação de serviços com alunos de graduação, recém-formados e cursando mestrado – a maioria orientada pelos coordenadores e professores participantes da pesquisa – cujas tarefas seriam elaborar notas técnicas.

“Um importante achado nessa apuração - quanto à aplicação dos recursos percebidos pela UFS para o enfrentamento da pandemia - foi o pagamento a alunos e alunas ainda na graduação, ou que concluíram recentemente sua graduação, pela elaboração de Notas Técnicas sobre a pandemia”, disse Denise. Muitas dessas notas técnicas, afirma, continham dados que já estavam disponíveis ao público.

Outra questão que chamou a atenção é o fato de o projeto EPI Sergipe ser similar a um outro projeto da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), que tinha entre os coordenadores o ex-reitor da UFPel, o professor de educação física Pedro Hallal. A metodologia é praticamente idêntica, diz a professora Denise, que também encontrou na redação do projeto sergipano trechos idênticos a esse outro no qual se inspirou. Apesar dessa semelhança e do fato de o professor Pedro Hallal ter assumido um projeto de alcance nacional chamado EPI-Covid, baseado no que ele desenvolveu no Rio Grande do Sul, o projeto EPI-Sergipe não tem qualquer integração com aquele.

O projeto da JBS 

Outra iniciativa citada na denúncia é um projeto financiado pela empresa JBS, no valor de R$ 720 mil e gerido pela Fapese. Até hoje, ele é mantido sob completo sigilo pela Fundação, sem a divulgação de quem são os pesquisadores envolvidos e como os recursos foram aplicados. Denise destaca a coincidência de o professor Pedro Hallal, da UFPel, ser também um dos três membros do comitê científico da JBS, responsável por escolher os projetos a serem beneficiados com recursos da empresa.

Depois de várias solicitações de informação, a única informação prestada é que foi a própria empresa que solicitou a confidencialidade - o que a empresa nega (leia aqui). De qualquer forma, como os recursos foram doados a uma universidade pública, a regra é a publicidade, a não ser que existam dados sensíveis, o que não parece ser o caso.

“A Fapese invoca o art. 4º da lei que rege a atuação das Fundações de Apoio para manter o projeto sob sigilo absoluto há mais de 15 meses, quando esse artigo determina é a máxima publicidade, impondo que todos os contratos, pagamentos, prestações de contas e relatórios dos projetos que executa estejam disponíveis em sua página na internet”, diz Denise.

“Tô com a UFS”

Um terceiro projeto citado na denúncia, o “Tô com a UFS” – firmado em parceria com o Ministério Público Federal em Sergipe (MPF/SE), o MPT-SE e o MP-SE –, foi uma grande campanha de marketing realizada para angariar recursos, que seriam recebidos e utilizados pela UFS por meio da Fapese, fundação ligada à universidade, para financiar projetos de pesquisa para combater a Covid-19.

O projeto arrecadou cerca de R$ 320 mil, dos quais praticamente 99% tiveram origem em multas aplicadas pelo MPT de Sergipe. Mesmo com toda a publicidade – que contou com outdoors e até jingle cantado por artistas locais – o projeto só conseguiu captar R$ 3 mil de doações particulares.

Denise diz que o “Tô com a UFS” contou com vários subprojetos, nos quais ela encontrou diversos problemas: falta de transparência de como foram selecionados os projetos e seus participantes; ausência de cronogramas de execução; alguns sem indicação do coordenador; falta de objetivos claros, pois há projetos que não têm natureza de atividade de extensão ou pesquisa a ser desenvolvida; e alguns sem orçamento claro.

Apenas um relatório parcial de prestação de contas foi disponibilizado nas últimas duas semanas, após mais de um ano desde o início de sua execução, mas nenhum contrato, nota fiscal e outros documentos relevantes estão acessíveis para consulta pública sobre o projeto.

Após pedido de informação, o pró-reitor de Planejamento da UFS, Kleber Fernandes de Oliveira, confirmou que não foram lançados editais para seleção dos projetos. Isto é, os projetos e seus participantes foram escolhidos por um grupo ligado à Reitoria e os recursos foram utilizados sem auditoria.

O que dizem os envolvidos

A empresa JBS disse que realizou doações para auxiliar no combate à pandemia de Covid-19 por meio do seu programa de responsabilidade social “Fazer o Bem Faz Bem”, contemplando iniciativas de saúde pública, apoio a pesquisas científicas e assistência social. Entre elas, foram destinados recursos à UFS, por meio da Fapese, para a pesquisa "Monitoramento clínico-epidemiológico da etiologia das infecções respiratórias virais no Estado de Sergipe: Vigilância e construção de modelos preditivos em Saúde". A doação foi feita com encargo, ou seja, o recurso deve ser utilizado para os fins aos quais foi destinado. A empresa afirmou, além disso, que não solicitou sigilo sobre os dados da pesquisa.

“Todas as doações feitas pela JBS passam pelos processos de avaliação, seleção e auditoria estabelecidos pela governança do programa Fazer o Bem Faz Bem, assim como pela aprovação do Compliance da empresa. Para validação dos projetos e recursos, foram criados comitês especiais que contam com a participação de membros independentes, incluindo especialistas”, finalizou.

A UFS disse, em resposta a um e-mail enviado por nossa equipe ao professor Lucindo Quintans, coordenador do projeto “Tô com a UFS”, que todas as informações e elucidações estão sendo prestadas ao Ministério Público Federal (MPF). Sobre as diversas informações solicitadas pela nossa reportagem, a universidade se limitou a dizer que estão disponíveis em seu site e no site da Fapese, e são de domínio público. Esses links, no entanto, não divulgam informações sobre como foram escolhidos os projetos, seus executores, nem seus relatórios finais.

“Ressalta-se que os projetos desenvolvidos pelos pesquisadores geraram relatórios, notas técnicas, artigos científicos, inovações, formação de recursos humanos e diversas prestações de serviços, especialmente destinados à populações vulneráveis, e no enfrentamento da COVID-19 e podem ser acessadas em diferentes ambientes do portal da UFS”, disse a nota, indicando um link de boletins da universidade sobre a Covid-19 e outro com os títulos dos projetos de extensão.

“A UFS, instituição pública com mais de meio século de serviços prestados à sociedade, reitera seu compromisso com a verdade e ressalta que é de fundamental importância que acusações dessa natureza não se reproduzam de forma a colocar em risco a integridade e imagem da única universidade pública e gratuita do estado, patrimônio imaterial da sociedade sergipana”, informou a universidade.

A Fapese enviou nota dizendo que todas as informações estão sendo prestadas ao MPF por meio de um “Procedimento Preparatório”. A pasta também disse que todas as informações solicitadas são de domínio público e se encontram em seu site e no site da UFS.

A Fapese diz também que, além das documentações referentes aos projetos [citados pela reportagem] também podem ser encontrados relatórios, artigos científicos, Currículo Lattes dos pesquisadores envolvidos nos projetos, notas técnicas e reportagens publicadas em jornais, todas destinadas às populações vulneráveis e no enfrentamento da Covid-19 e podem ser acessadas em diferentes ambientes do portal da UFS, e sites da imprensa.

“Ademais, a Fapese, ao longo dos seus 28 anos de existência tem prezado pela ética e zelo ao erário público e privado, e, por tal, causa-nos estranheza e indignação uma instituição com tal reputação ser alvo de acusações desta natureza, infundadas e nitidamente fora da sua realidade de trabalho”.

“Gostaríamos de reiterar nosso compromisso com a verdade e ressaltar que é de fundamental importância que acusações como essas não se reproduzam de forma a colocar em risco a integridade e imagem da nossa instituição. Neste sentido, estamos respondendo a todos os questionamentos vindos dos órgãos competentes para tal e contamos com a justiça para nos mantermos firmes e honrados como sempre fomos”, disse.

O professor Luiz Carlos de Santana Ribeiro, coordenador do subprojeto do EPI-Sergipe, "Evolução da contaminação e estimação de impactos da pandemia COVID-19 em Sergipe", informou apenas que, considerando que os fatos estão sendo tratados no âmbito de uma investigação do MPF, as respostas a quaisquer questionamentos já foram dadas à justiça. Vânia Lourenço, da “Mandacaru Consultoria”, se posicionou da mesma forma.

Já o MPT de Sergipe disse em nota que, salvo as questões relativas aos Termos de Cooperação firmados pelo MPT e a UFS, cuja competência é comum, os fatos narrados nesta reportagem já estão sendo investigados pelo MPF, para o qual já foram repassadas as informações requisitadas.

Sobre os critérios para a escolha dos projetos, o MPT informa que houve deliberação dos membros dos MPs envolvidos, com observação da independência funcional, e com fundamento nas recomendações do Poder Judiciário e do Ministério Público, que “estimularam boas práticas de priorização das destinações de recursos financeiros resultantes de sanções pecuniárias para ações de combate à propagação da infecção pelo novo coronavírus”.

“Todas as destinações passaram pelo crivo do Poder Judiciário Trabalhista, por meio de decisões proferidas pelos juízes do Trabalho, porque todos os recursos estão depositados em contas judiciais vinculadas aos processos (ato jurisdicional)”.

O MPT também informou que todos os recursos destinados estão relacionados ao combate à Covid-19, de modo que todos os outros projetos não relacionados com esta finalidade foram descartados. E também foram descartados projetos que não apontavam resultados concretos ou com prazos factíveis. O MPT, por fim, esclarece que a UFS prestou contas de R$ 1,1 milhão, depositado diretamente na conta única da UFS, sendo que, ao contrário do que diz Denise, o valor, segundo a UFS, teria sido utilizado para aquisição de testes para Covid-19. Em relação aos demais projetos, o MPT diz que já foi expedido ofício, em dezembro, solicitando a prestação de contas e a Fapese está dentro do prazo concedido.

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