A reforma agrária e o aborto não possuem qualquer ligação aparente. Mas, cada vez mais, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vem incorporando essa e outras causas chamadas “progressistas” ao seu repertório.
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Se nunca esconde o seu alinhamento ideológico com a esquerda radical, o MST — que em sua origem tinha vínculos com a Igreja Católica — parece estar cada vez mais à vontade para adotar pautas que tradicionalmente não eram tratadas como relevantes pelos movimentos de inspiração marxista, geralmente mais preocupados com a tarefa de derrotar o modelo econômico capitalista.
Neste mês, por exemplo, a página oficial do MST publicou um artigo em que as autoras dão recomendações de como convencer as mulheres da “classe trabalhadora” a apoiar a legalização do aborto. “Essa é uma tarefa urgente que deve estar na agenda dos movimentos sociais e também nos campos institucionais”, diz o texto assinado por Delana Corazza e Angélica Tostes. O artigo elenca a religiosidade do povo brasileiro como um obstáculo à descriminalização do aborto, e faz recomendações de como se comunicar com as mulheres das classes mais baixas.
E esse é apenas o exemplo mais recente de como, à medida que a causa da reforma agrária perde relevância em um país cada vez mais urbano, o movimento se torna cada vez mais apegado a temas que têm zero relação com a distribuição de terras no campo.
Ou seja: pessoas pobres e sem instrução formal são atraídas para o movimento por causa da esperança na obtenção de terras, mas acabam sendo usadas como público cativo para a propagação ideias que nada têm a ver com o tema.
Arco-íris e socialismo
Ainda em 2019, o MST lançou uma publicação especial sobre os “LGBT Sem Terra”. Nela, o grupo admite que sua meta final é o socialismo, mas afirma que o tema da sexualidade é útil na busca por esse objetivo. “Hoje, enxergamos a diversidade sexual como parte dessa luta e da resistência no atual contexto político, dando materialidade ao projeto popular que carrega consigo o sonho da terra e dos seres humanos livres”, afirma o material, que também é mais direto logo adiante: “Hoje, um arco-íris se soma ao vermelho de nossa bandeira para construirmos juntos uma sociedade socialista, livre da opressão e exploração”.
A publicação explica que a aproximação com a população LGBT começou em 2015, com o primeiro seminário “O MST e a Diversidade Sexual”. Para o MST, a culpa da homofobia, claro, é do capitalismo. “A LGBTfobia, assim como o machismo, são manifestações concretas de um sistema de dominação, opressão e exploração, localizado na relação entre capitalismo e patriarcado”, diz o texto.
Neste ano, o MST passou a fazer parte da “Campanha Permanente Contra a LGBTI+fobia no Campo”. O movimento também organizou, na capital paulista, uma festa do Orgulho LGBT que recebeu o nome de “Close & Luta”.
A guinada progressista inclui até a adoção da linguagem neutra. “Queremos que nos mantenham vivos, vivas e vives”, disse Kelvin Nícolas, do Coletivo Nacional LGBTI+ do MST, em um artigo publicado em junho deste ano pela organização.
Aulas de feminismo em acampamento
Recentemente, o MST tem ampliado a sua agenda. A entidade agora promove oficinas sobre feminismo (sempre sob a ótima marxista). Uma das turmas reuniu 75 mulheres em um acampamento de Viamão (RS) para dicas de como enfrentar o patriarcado. Na visão do movimento, “o marxismo se une ao debate do feminismo a partir do momento em que traz em seus estudos a origem das diferenças de classes e a opressão da classe trabalhadora e faz repensar como as mulheres são oprimidas pelo sistema capitalista da propriedade privada”.
A organização também tem dado mais ênfase à pauta racial. Em 2020, sob a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), o MST ajudou a propagar a tese — incorreta — de que o Estado brasileiro promove um “genocídio da juventude negra.” O grupo também exaltou Malcolm X, o ativista americano que, nos anos 1960, defendeu o uso da violência no combate à segregação racial.
Doutrinação nas escolas
A ampliação da agenda ideológica do MST também preocupa porque tende a se refletir nas escolas mantidas em acampamentos dos sem-terra. Se antes o currículo já era contaminado pela apologia ao pensamento de Che Guevara e pela defesa dos ideais socialistas, a carga ideológica tende a se tornar mais explícita conforme o MST adota novas pautas progressistas.
O MST mantém cerca de 2 mil escolas em acampamentos. São unidades públicas de ensino, mas geridas com um certo grau de autonomia pelos próprios assentados. Segundo o movimento, aproximadamente 200.000 crianças frequentam essas unidades de ensino.
O professor Bráulio Porto de Mattos, da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, diz que o MST se aproveita da indiferença de gestores locais. “Tamanha a audácia do MST, que eles pressionam as prefeituras para que eles possam definir o currículo e o perfil do professor das escolas municipais”, afirma.
Jean-Marie Lambert, professor emérito da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), diz que a pauta do MST vai além da redistribuição de terras e envolve uma redefinição do que seria a natureza humana. “O que eles estão propondo é um novo modelo antropológico. É um projeto de poder, com certeza, mas não um projeto de poder no sentido marxista clássico. É um projeto de mudança antropológica”, ele afirma.
Lambert diz ainda que o MST enxerga a educação como uma ferramenta a serviço da revolução. “É uma doutrinação similar à que acontece nas outras escolas públicas, mas potencializada. Estamos falando de uma espécie de reeducação ideológica clássica”, ele diz.
O movimento tenta também avançar no ensino superior. Recentemente, a Universidade Federal de Pelotas confirmou estar avaliando a criação de um curso de Medicina que, na prática, atenderia sobretudo membros do MST.
Em maio, a Câmara dos Deputados instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar irregularidades cometidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. A CPI do MST tem como objetivo “investigar a atuação do MST, do seu real propósito, assim como dos seus financiadores”.
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