Se o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubar o artigo 19 do Marco Civil da Internet – que isenta de responsabilidade plataformas da internet por conteúdos gerados por seus usuários – haverá impacto não apenas sobre as redes sociais, mas também sobre veículos de imprensa e diversos setores da economia digital. O alerta foi dado por entidades do segmento de tecnologia e juristas que participam do julgamento sobre o tema, iniciado nesta quarta-feira (27) na Corte.
Está em análise pelos ministros a regra segundo a qual “o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente”.
O dispositivo foi inserido na lei com o objetivo declarado de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura. A lógica é que a responsabilidade por postagens, textos e vídeos em plataformas como X, Facebook e YouTube, por exemplo, recaia, a princípio, sobre o autor, não sobre as plataformas.
Caso o material seja ofensivo, a parte atingida deve requerer na Justiça indenização do ofensor, não do serviço intermediário que hospedou a ofensa. Pela regra, as plataformas só podem ser punidas caso descumpram uma ordem judicial de retirada daquele conteúdo, o que implica uma exame da Justiça prévio sobre a (i)licitude do conteúdo.
Pressão para remoção de conteúdos ofensivos sem decisão judicial está em alta
Nos últimos anos, cresceu no meio jurídico e político a pressão para que as plataformas removam conteúdos ofensivos apenas com base numa notificação direta da pessoa ofendida, sem necessidade de acionamento da Justiça. O argumento é que a pessoa ofendida não deve suportar danos à sua imagem por ofensas online enquanto a Justiça não decidir sobre seu caso.
Esse mecanismo, conhecido como “notice and take down” (notificação e retirada) já está previsto no Marco Civil da Internet, mas para hipóteses excepcionais: violação da intimidade, na divulgação de nudez ou sexo sem autorização; e violação de direitos autorais.
As plataformas argumentam que, num cenário em que sejam corresponsáveis por conteúdo ofensivo gerado por usuários, haveria um incentivo para que, a fim de evitarem punições na Justiça, removessem tudo que incomodasse alguém, mesmo que legítimo e lícito. Críticas a uma pessoa, por exemplo, tenderiam a ser retiradas a partir de sua mera notificação. Haveria prejuízo para o debate público, e portanto, restrição excessiva à liberdade de expressão.
Na sessão desta quarta (27), o advogado do Facebook argumentou que a imprensa também seria afetada. “Isso importa na preservação do jornalismo profissional. Porque em extensa medida conteúdos que são postados em plataformas vem dessas fontes. Qualquer conteúdo que represente denúncia ou crítica pode ser havido como ofensivo e pode ser instado a ser removido. O que causaria gravíssimo prejuízo ao debate público”, disse José Rollemberg Leite Neto.
Segundo ele, se a regra do Marco Civil da Internet cair, uma resenha crítica a um filme ou peça de teatro poderia ser removida das redes se o diretor achar o texto ofensivo. O mesmo poderia ocorrer com uma reportagem que revelasse um escândalo, se a pessoa envolvida – incluindo autoridades, políticos, personalidades, etc. – se sentir ofendida e notificar a plataforma. Mais do que isso: jornais e portais de notícia poderiam ser processados pelos comentários postados por seus leitores no site das publicações. “Nesse caso, eles funcionam também como provedores de aplicações”, disse o advogado à reportagem.
Comércio eletrônico teme impacto com mudança no Marco Civil da Internet
Nas últimas semanas, outros segmentos da economia, que hoje hospedam serviços na internet, se manifestaram junto ao STF por temer impactos em seus negócios. Representando vários desses setores, a entidade associativa Câmara Brasileira da Economia Digital (Camara-e.net), chamou a atenção para as consequências não apenas para as redes sociais, mas também para o comércio eletrônico, plataformas de pacotes de turismo, serviços de streaming, além de ferramentas de educação digital e de telemedicina.
“A internet não é apenas uma praça de manifestação de ideias, mas também uma praça de negócios, conduzidos por pessoas físicas, pequenas e médias empresas - é o caso das transmissões no YouTube, das compras no Mercado Livre, dos anúncios de produtos usados na OLX, da busca por conhecer pessoas no Tinder, das reservas de hospedagem para as férias no Airbnb, da compra de passagens mais baratas na Expedia, de busca de inspiração para ambientes no Pinterest, e até das “lives” na Twitch”, exemplificou a entidade.
O risco aqui é que as críticas dos consumidores sobre os produtos e serviços sejam removidas a partir da reclamação de quem oferta ou comercializa os bens. “Em marketplaces, vendedores e compradores seriam atingidos, limitando a possibilidade de fazer negócios online e afetando a renda de milhares de brasileiros”, alertou o a Camara-e.net em manifestação enviada ao STF.
O site Mercado Livre, por exemplo, onde vendedores oferecem produtos diretamente a compradores, enviou à Corte parecer em que defende uma separação. Argumentou que sites de comércio eletrônico já estão submetidos a um regramento próprio relativo às reclamações dos consumidores, tais como o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil.
“Enquanto as redes sociais lidam principalmente com a disseminação de informações e a interação social, serviços de nuvem hospedam dados e os marketplaces enfrentam questões complexas relacionadas a transações comerciais. A falta de distinção no MCI significa que todos esses provedores são, na prática, regulados da mesma forma, independentemente das diferenças significativas em seus modelos operacionais e nos riscos associados”, diz o parecer, assinado pelo jurista Ricardo Campos.
Na sessão desta quarta, o Google, envolvido numa das ações em julgamento, defendeu a regra do Marco Civil da Internet. Representando a empresa, o advogado Eduardo Mendonça argumentou que deve permanecer com a Justiça a função de aferir se determinado conteúdo controverso é ilícito e, portanto, deve ser removido. “Longe de ser heterodoxa, a regra evita que se crie incentivo à remoção automática de tudo que seja controverso. Reverter genericamente essa linha implicaria um dever de censurar um terceiro”, disse.
“Há imensa subjetividade do conceito de conteúdo ofensivo e o fato da jurisprudência nacional ser amplamente protetiva de direitos da personalidade levaria os provedores da internet a suspenderem o conteúdo constante das notificações recebidas. O que certamente criaria ambiente propício à violação da liberdade de expressão e manietações do pensamento e realização de censura massiva sobre conteúdo”, disse o advogado do Facebook na sessão.
Facebook e Google pedem que dever de remoção seja restrito a casos objetivos de ilicitude
Facebook e Google defenderam ainda que, caso o STF imponha às redes o dever de remover conteúdos ofensivos sem necessidade de decisão judicial, que isso se limite a casos inequívocos e objetivos de ilicitude, tais como exploração sexual infantil, terrorismo, racismo, e incentivo a abolição violenta do Estado Democrático de Direito.
Assim como nos casos de violação da intimidade ou de direitos autorais, defenderam que a remoção ocorra por pedido direto da parte afetada caso a notificação indique o conteúdo específico e as razões da necessidade de remoção. No mais, argumentaram que, por iniciativa própria, suas plataformas já removem conteúdos que contrariem seus termos de uso, regras próprias que abrangem vedações que já estão previstas na legislação.
O julgamento no STF deve ser retomado nesta quinta-feira (28) com os votos dos ministros. Estão em julgamento recursos do Facebook e Google contra decisões de segunda instância que as obrigaram a pagar indenizações por causa de um perfil e de uma comunidade que continha postagens ofensivas contra duas pessoas. Elas conseguiram na Justiça a remoção das páginas, mas também reparação em dinheiro por parte das plataformas por danos morais.
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