De acordo com dados do DEPEN, somente 3% das unidades prisionais brasileiras possuem alas destinadas ao público LGBTI| Foto: Foto: Jonathan Campos/ Gazeta do Povo/ Arquivo
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O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu, na última sexta-feira (2), que pessoas que se autodeclararem transexuais, travestis ou intersexo poderão escolher se querem ser levadas a unidades penitenciárias masculinas ou femininas. A resolução, que terá validade imediata assim que for publicada, tem como principal objetivo coibir a violência sofrida por transexuais em prisões masculinas, mas suscita algumas polêmicas.

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Por exemplo, de acordo com a decisão, pessoas que nasceram com o sexo biológico masculino e se autodeclararem transexuais poderão ser levadas a unidades penitenciárias femininas, de acordo com sua própria preferência. A cirurgia de troca de sexo não seria um pré-requisito para a autodeclaração de alguém como trans.

A resolução do CNJ prevê que, quando possível, as pessoas trans deverão ser encaminhadas para alas destinadas especificamente ao público LGBTI. No entanto, hoje, somente 3% das prisões do Brasil contam com alas desse tipo, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN). A resolução do CNJ determina que as penitenciárias deverão criar essas alas.

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Pessoas que se declararem homossexuais ou bissexuais continuarão sendo encaminhadas necessariamente a unidades penitenciárias correspondentes a seus sexos biológicos, mas, dentro delas, terão o direito de escolher ficar nas alas específicas para o público LGBTI.

Decisão por via judicial é inédita no mundo

Segundo o jurista Thiago Sorrentino, professor de Direito do Ibmec-DF, há outros lugares do mundo que adotaram a autodeclaração como critério para o direcionamento de pessoas LGBTI a unidades penitenciárias, mas a decisão por via judiciária é inédita no mundo. Em outros lugares, isso ocorreu pela via legislativa.

“O melhor seria se nós tivéssemos uma lei – a exemplo de como hoje nós temos uma lei de execuções penais –, que isso viesse do Legislativo, depois de muitos debates, do análise de pareceres… O CNJ pode fazer isso? Pode, sem dúvida, mas seria melhor que ele desse a deferência para o Legislativo”, avalia Sorrentino.

Ele explica que a regulamentação brasileira decorre de um documento internacional chamado “Princípios de Yogyakarta”, de 2006, que define normas para a aplicação de leis internacionais de direitos humanos em relação à orientação sexual e à "identidade" de gênero.

Falta de ala específica para trans pode representar risco à segurança, afirmam especialistas

Segundo Acacio Miranda, especialista em Direito Penal e Constitucional, alguns países da Europa, como a Holanda, já aplicam leis do tipo com êxito, mas disponibilizando a pessoas LGBTI alas específicas. “Tem funcionado, respeitando essas circunstâncias. Há uma separação. Com essa separação, acaba funcionando.”

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Miranda diz que, sem essa separação, pode haver risco para a população carcerária. “Há a questão da personalidade, da individualidade, mas também há uma questão relacionada à ordem e à segurança interna dos presídios. É necessário que qualquer risco seja mitigado”, afirma.

De acordo com Sorrentino, o Estado precisará oferecer proteção também para a população carcerária que for conviver com as pessoas LGBTI nas prisões. “Tem que pensar nos dois lados, tanto na população carcerária que está ingressando como na população carcerária que vai ter que conviver com essas pessoas. A norma vai em um bom sentido, dizendo que o melhor é ter áreas específicas para tratar as pessoas conforme as peculiaridades. Mas e nos lugares em que você não tiver isso pronto? Nesses casos, os presos que se sentirem ameaçados, que se sentirem constrangidos, vão ter a possibilidade de procurar o Judiciário para fazer valer o direito deles de ter a integridade física preservada. E a responsabilidade vai ser do Estado. Se acontecer algum tipo de problema, o Estado vai ser responsabilizado por isso.”

Sorrentino considera que a norma definida pelo CNJ não deveria ser aplicada nos casos temerários, em que há claro risco à integridade física de presos. Ele avalia que, enquanto o sistema prisional não tiver a condição para fazer a separação correta, será necessário um cuidado especial.

“A gente tem situações em que não há espaço nem para o preso definitivo – juntam preso definitivo com provisório. Tivemos casos, no passado, em que menores de idade do sexo feminino foram presas com maiores de idade do sexo masculino. Se já tem tantos problemas assim, o melhor seria primeiro melhorar a infraestrutura, conseguir ter o sistema para recepcionar bem essas pessoas, para protegê-las, para depois fazer a regulamentação”, opina.

Na Inglaterra, mulher trans estuprou duas presas em 2018

Em 2018, Karen White, uma mulher trans da Inglaterra nascida com o nome de Stephen Wood e sexo biológico masculino, admitiu ter abusado sexualmente de duas presas em uma unidade prisional feminina.

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Na época, Karen tinha passado por operações para ficar mais próxima da figura feminina, mas ainda não tinha se submetido à cirurgia de transgenitalização, a chamada “mudança de sexo”, nem havia mudado seu registro civil de homem para mulher.

O caso teve o agravante de que Karen estava presa justamente por ter estuprado uma mulher, em 2016. Além disso, tinha antecedente criminal: em 2001, foi presa por molestar sexualmente uma criança.

Na Inglaterra, se um preso se identifica com o gênero oposto, mas ainda não mudou seus documentos ou passou por cirurgia, um comitê se reúne para analisar a questão e verificar em que tipo de prisão o réu deverá ser alocado. Esse comitê, contudo, deve levar em consideração não apenas o crime pelo qual a pessoa está sendo acusada, mas também seus antecedentes criminais. Tais questões foram ignoradas no caso de Karen White.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]