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A decisão da semana passada do Supremo Tribunal Federal (STF), que confirmou uma liminar do ministro Alexandre de Moraes, de impor multa e bloquear contas bancárias do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ) continua causando perplexidade entre juristas. Para alguns dos principais penalistas do país, a Corte criou uma inovação, em matéria penal, não prevista na legislação.
A medida também chamou a atenção dentro do Ministério Público que, até o momento, não via essa possibilidade. Procuradores ouvidos pela reportagem estranharam a decisão e consideram que esse precedente questionável poderá agora ser aplicado a qualquer pessoa.
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Na última sexta (1º), por 9 votos a 2, a maioria dos ministros referendou a aplicação de multa diária de R$ 15 mil a Daniel Silveira, além do bloqueio de todas as suas contas bancárias, para forçá-lo a colocar a tornozeleira eletrônica. O parlamentar se recusava a instalar o equipamento para ser monitorado, por considerar que a medida afetava o exercício de seu mandato e, por isso, deveria ser autorizada pela maioria dos deputados federais, como ocorre em caso de prisão.
Como Moraes entendia que não haveria prejuízo ao mandato – ele poderia se deslocar dentro do estado do Rio de Janeiro e também viajar a Brasília – optou então por impor a multa e o bloqueio. O que surpreendeu o mundo jurídico é que as duas medidas não estão previstas no Código de Processo Penal (CPP) e, por isso, não poderiam, a rigor, ser impostas.
“Todo poder é condicionado pela legalidade. Então, no processo penal você só pode punir alguém – e falo punir genericamente, considerando a palavra punir não só como pena, mas uma medida cautelar também é uma forma de punir, de limitar liberdade – dentro dos estritos limites da legalidade, dentro daqueles institutos previstos na lei”, disse à Gazeta do Povo Aury Lopes Jr., advogado, doutor em direito processual penal e professor titular da PUC-RS.
O uso de tornozeleira eletrônica é uma medida que substitui a prisão preventiva, que é decretada quando há risco à ordem pública, à investigação ou à aplicação da lei penal. Moraes impôs o monitoramento porque, em suas palavras, Silveira “voltou a proferir ataques direcionados” ao STF e também a “proferir ofensas direcionadas” aos ministros.
Em eventos públicos, o deputado conclamou as pessoas a “enfrentar o sistema”, referindo-se ao tribunal. Disse que não havia “bússola moral” a integrantes da Corte. “E vai continuar essa história se nós dobrarmos os joelhos e aceitarmos essas imposições que vêm através do Judiciário, a via mais rara de tomada de poder”, afirmou, durante o congresso Brasil Profundo, realizado em de Londrina (PR), no dia 12.
“Ô ministro, olha só, o senhor está cometendo muitas inconstitucionalidades. Eu acho que o senhor tem que pegar... agir dentro da Constituição. Sabe por quê? Senão o senhor está chateando toda a Federação, toda a República Federativa do Brasil. Está ficando complicado aqui para o senhor continuar vivendo aqui, nem que seja juiz”, disse ainda Daniel Silveira.
Ao determinar o monitoramento eletrônico – medida que já havia sido adotada no ano passado, precisamente em substituição a uma prisão preventiva – Moraes disse que ele já havia violado sua área de circulação e até tentado fugir da Polícia Federal, em Petrópolis - o que a defesa de Silveira nega. A recusa em colocar novamente o aparelho, permanecendo dentro da Câmara, seria “completa deturpação da natureza do cargo de deputado federal”.
“Estranha e esdrúxula situação, onde o réu utiliza-se da Câmara dos Deputados para esconder-se da Polícia e da Justiça, ofendendo a própria dignidade do Parlamento, ao tratá-lo como covil de réus foragidos da Justiça”, escreveu o ministro na decisão que impôs a multa e o bloqueio de bens.
No mesmo dia da decisão, quinta-feira (31), Daniel Silveira foi à Polícia Federal e aceitou instalar o aparelho. A multa, assim, deixou de ser aplicada e as contas do deputado permaneceram liberadas. Ainda assim, o precedente foi aberto com aval da maioria dos ministros, que, na sexta, confirmaram a possibilidade não prevista em lei de que um réu seja atingido no bolso se descumprir uma medida substitutiva da prisão preventiva.
As críticas de Kassio Marques e de outros penalistas
Na votação sobre a medida, realizada de maneira virtual, Kassio Marques abriu a divergência – foi seguido depois por André Mendonça – e fez duras críticas à inovação de Moraes.
Ele identificou que o colega aplicou, por analogia, uma regra do Código de Processo Civil que permite ao juiz, num litígio entre particulares, “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária”.
Trata-se, no jargão jurídico, do chamado “poder geral de cautela”, uma forma de forçar a pessoa a pagar uma dívida, por exemplo, restringindo seus direitos – há casos, por exemplo, em que juízes recolhem o passaporte ou mesmo a carteira de habilitação.
O problema, para muitos juristas, é que, no âmbito penal, qualquer medida restritiva deve atender ao princípio da legalidade, isto é, estar expressamente descrita na lei.
“A fixação de multa, no valor de 15 mil reais por dia, a qual em dois dias alcançaria toda a remuneração líquida mensal do acusado, como também o bloqueio de suas contas bancárias para cumprimento das cautelares fixadas, não tem qualquer arrimo no ordenamento jurídico pátrio e caracteriza-se de forma transversa em confisco dos bens do réu em processo penal por decisão monocrática e cautelar do relator em ação penal originária, sem o devido processo legal, claramente incompatível com a Constituição da República. Afinal, vivemos em uma democracia, onde o estado de direito vige, não sendo, portanto, admitida a imposição de qualquer medida privativa e/ou restritiva de direito não prevista no ordenamento jurídico legal e sobretudo constitucional”, escreveu Kassio Marques em seu voto.
Ele citou, para embasar essa posição, obra famosa do juiz e professor Rodrigo Capez, mestre e doutorando em Direito Processual Penal pela Faculdade de Direito da USP. Atualmente ele é juiz auxiliar do ministro Luiz Fux no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Durante uma palestra online promovida pelo próprio STF nesta segunda (4), para divulgar seu livro, que trata exatamente de prisões preventivas, Capez comentou a decisão do STF. Disse que, em relação a essas medidas que substituem a prisão preventiva “não há espaço para poder criativo por parte do Estado”.
“Na minha visão, não há poder geral de cautela para imposição de medidas cautelas atípicas [não previstas em lei]. Essa minha posição foi encampada pelos ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça ao abrirem divergência com o ministro Alexandre de Moraes. Mas não li todos os fundamentos, para saber quais foram os argumentos para imposição da medida. Mas a minha posição, externada no livro, é que não há possibilidade”, disse Capez.
Mestre e doutor em direito pela UFMG e autor prestigiado na área, o advogado Eugênio Pacelli também considera que medidas cautelares em matéria penal têm que ter previsão expressa em lei. “Isso não é algo que pode sair da cabeça do juiz. Normalmente, quando se fala em processo civil, existe um poder geral de cautela, que permite que o juiz tome as providências mais adequadas à preservação do interesse público. Em matéria penal, não. Porque toda cautelar é uma restrição de direitos e para isso, é preciso que tenha lei”, afirmou.
Ele observa que o próprio Código de Processo Penal já prevê uma solução em caso de descumprimento do monitoramento eletrônico: a imposição de outras medidas, como comparecimento periódico em juízo, proibição de acesso a determinados lugares, e até mesmo fiança. No limite, em caso de descumprimento dessas, cabe a própria prisão preventiva. Pacelli acredita que, embora a multa e o bloqueio de contas não estejam previstos na lei, ainda assim é uma medida menos grave que mandar alguém para a cadeia.
“Se você entender que a medida de bloqueio ou aplicação de multa é mais favorável que a prisão preventiva, neste caso, dentro de uma excepcionalidade muito restrita e limitada, é possível compreender e justificar a medida. Unicamente como alternativa menos grave à prisão preventiva. Nesse sentido, acho que a medida se justifica e legitima, mas de regra é uma inovação, é um recurso ao poder geral de cautela, que não é comum, mas sim é justificável.”
Nesse ponto, Aury Lopes Jr. discorda.
“Ainda que possa parecer num primeiro momento que é muito melhor para o réu, em vez de ser preso, ter uma medida cautelar não prevista na lei, como é o caso de multa e bloqueio de bens, eu entendo que não é cabido e correto à luz do processo penal. Impor uma multa poderia ser até pela via de uma fiança, isso sim perfeitamente possível. Poderia ter ampliado as medidas cautelares diversas dentro daquelas previstas – proibição de sair da cidade, obrigação de se recolher – poderia ter colocado. E inclusive aumentar o valor ou estabelecer valor de fiança. Agora, determinar multa, que não é fiança, viola o artigo 319 do CPP. E principalmente, impor o bloqueio de bens, que na verdade serve para garantir o pagamento de uma multa? Isso não. Ou você tem a legalidade estrita ou vai cair numa generalização de um poder geral da cautela, que é inadequado no processo penal, porque não tem um poder geral de punir”, diz o advogado.
No caso de Daniel Silveira, a imposição de uma nova prisão preventiva, no entanto, poderia encontrar dificuldades. O próprio STF confirmou em 2017 que ela não pode ser imposta a parlamentares, que só podem ser presos em flagrante por crime inafiançável, caso em que a medida deve ser confirmada pela maioria dos deputados em votação na Câmara. Para driblar esse entendimento no primeiro pedido de prisão de Silveira, Moraes inovou ao trazer para a internet o conceito de “infração permanente” - a disponibilização do vídeo nas redes sociais do deputado com críticas ao STF, para o ministro, permitiria a prisão em flagrante, uma vez que no momento da prisão a publicação permanecia disponível (argumento também questionado por juristas). Se optasse agora por fazer algo similar, Moraes, além de ter de demonstrar que o parlamentar estaria cometendo um crime em flagrante inafiançável, poderia causar uma tensão institucional ainda maior com o Legislativo.