Na ausência de legislação sobre o tema, STF e CNJ definiram medidas que orientam o funcionamento da socioafetividade no Brasil| Foto: Pixabay
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A paternidade socioafetiva – reconhecimento legal de parentesco a partir dos vínculos sociais e afetivos entre um adulto e uma criança que não possuem filiação biológica – voltou à discussão após uma decisão recente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que determinou que um homem deverá pagar pensão alimentícia a uma criança mesmo depois que um exame de DNA confirmou que ele não é o pai biológico. Na deliberação, a 4ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP alegou que o pai já tinha criado um vínculo com a criança, e isso configuraria paternidade socioafetiva.

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A socioafetividade, que abrange principalmente casos de homens que registram filhos biológicos de terceiros em seus nomes, embora também se aplique a mulheres, em menor grau, é complexa e tem passado por constantes modificações nos últimos anos. O conceito surgiu das chamadas “adoções à brasileira”, isto é, adoções irregulares em que alguém registra uma criança como se fosse seu filho, mesmo sabendo que a paternidade ou maternidade biológica pertence a outra pessoa. Casos desse tipo, como não foram seguidos os trâmites legais necessários, são contrários à norma jurídica e não podem ser comparados ao ato formal de adoção, conforme explica Regina Beatriz Tavares da Silva, presidente da Associação de Direito de Família e das Sucessões (Adfas) e advogada familiarista.

“Quando alguém assume a paternidade de uma criança que não é sua, fazendo o registro em seu nome, pratica crime contra o estado de filiação. O crime pode ser considerado como praticado com o chamado dolus bonus [quando se identifica a boa intenção ou a nobreza do motivo, embora o ato seja reprovável], podendo o juiz deixar de aplicar a pena. No entanto, ainda que o homem, que sabia da falsidade registral, se separe da mãe da criança, vai continuar com as responsabilidades de pai, como pensão alimentícia, além de ter naquela criança um herdeiro”, explica.

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“Além dessa hipótese, há aquela em que alguém assume no plano dos fatos a paternidade, embora não realize o falso registro, o que popularmente se chama de "filho de criação", e também se enquadra na paternidade socioafetiva”, afirma Regina Beatriz.

O Código Civil em vigor estabelece que a relação de parentesco pode ser biológica ou de outra origem, sendo essa “outra origem” o fundamento legal da paternidade ou maternidade socioafetiva.

Muitas decisões judiciais foram proferidas ao longo dos anos no sentido do reconhecimento dessa relação socioafetiva, especialmente em casos de "adoção à brasileira" e, mais recentemente, em casos dos chamados “filhos de criação”. A maioria das causas levadas aos tribunais dizem respeito à recusa da aceitação da paternidade socioafetiva após a separação do casal ou a questionamentos, por motivos de herança, por parte de herdeiros biológicos de quem deixou um filho socioafetivo.

“Nessas situações, a jurisprudência se firmou no sentido de que as obrigações paternas devem ser mantidas no caso de separação e que o filho socioafetivo deve ser sucessor em caso de herança”, afirma Regina Beatriz. “Entretanto, em se tratando de "adoção à brasileira", a vasta jurisprudência do STJ - e, por conseguinte, nos tribunais estaduais - se firmou no sentido da prevalência de uma ou outra espécie de paternidade: a socioafetiva ou a biológica, havendo casos em que o próprio filho, sabendo que aquele homem não era seu pai, pretendia o reconhecimento da paternidade biológica”.

Multiparentalidade no STF

A situação mudou quando o tema chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) 898.060, em setembro de 2016, a Corte fixou uma tese de repercussão geral na qual cabe a multiparentalidade, ou seja, num processo judicial podem ser reconhecidos como pai tanto o biológico quanto o socioafetivo simultaneamente. A partir daí, passou a ser possível que uma criança passasse a ter em seu registro de nascimento dois pais e uma mãe, duas mães e um pai, além de outros arranjos, já que não foi delimitado um limite de responsáveis.

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“A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais”, cita a tese fixada pela maioria dos ministros do STF.

Na ausência de legislação sobre o tema, CNJ cria provimentos

Em novembro de 2017, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou o Provimento Nº 63 que, dentre outras medidas, autorizou o registro em cartório da filiação socioafetiva de pessoas de qualquer idade. Com a norma, que tornou bastante frágil o processo de registro de filhos não biológicos, o CNJ tornou meramente administrativo o reconhecimento da paternidade socioafetiva, ou seja, não seria mais preciso buscar a Justiça para reconhecer a filiação socioafetiva; bastava ir a um cartório e registrar a criança.

“A Adfas foi contrária ao posicionamento do STF e, especialmente ao provimento do CNJ – esse, então, totalmente inadequado porque não conta sequer com a fiscalização do Poder Judiciário”, afirma Regina Beatriz. “No Registro Civil, quais instrumentos o cartório tem para avaliar a socioafetividade entre o adulto e a criança?”, questiona a jurista.

Diante de sucessivas críticas à fragilidade da norma do CNJ, em agosto de 2019, houve a publicação do Provimento Nº 83. O documento alterou trechos da norma anterior e tornou mais rígido o processo do registro de filhos a partir do conceito de socioafetividade.

Desde então, o registro de filhos socioafetivos pode ser feito em cartório apenas caso a criança seja maior de 12 anos; caso contrário, a questão deverá ser demandada na Justiça. Além disso, a norma determinou que, para o registro em cartório, ocandidato a pai ou a mãe socioafetivo deve comprovar que a paternidade ou maternidade socioafetiva é estável e está exteriorizada socialmente. O requerente também precisa demonstrar a afetividade por meio de documentos - como apontamento escolar como responsável ou representante do aluno; inscrição da criança em plano de saúde; registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar, etc.

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No Provimento Nº 83 também foi definido que, caso sejam atendidos todos os requisitos para o reconhecimento da paternidade ou maternidade em questão, o cartório deverá encaminhar o pedido ao Ministério Público (MP), que avaliará cada caso; sem um parecer favorável do MP, não é mais possível fazer o registro.

“Diante da omissão do Congresso Nacional, o CNJ acabou ‘legislando’ sobre o tema. Num primeiro momento, porém, abriu-se demais a questão da filiação socioafetiva e isso estava dando margens a muitos abusos e gerando insegurança para as crianças. Com o novo Provimento deu-se mais segurança ao procedimento”, afirma Paulo Roque, advogado especialista em Direito Civil e de Família. “Da mesma maneira acho prudente determinar que o Ministério Público, como fiscal da lei, seja ouvido, como está sendo feito atualmente”.

Roque destaca que, mesmo com as novas determinações, só haverá maior segurança para a criança se o cartório realmente investigar a existência da socioafetividade. “Não é só afeto, é muito mais do que isso. Significa haver um tratamento entre os dois literalmente como se fosse de pai e filho. É algo que emerge da relação, e o Direito só faz reconhecer. Não é porque a criança gosta do adulto que vai haver essa relação; é preciso verificar se a pessoa exerce, de fato, a função de pai”.

Regina Beatriz também destaca a maior segurança jurídica trazida pela nova medida: “No Provimento anterior, o CNJ foi levado a equívoco. O Provimento 83, em 2019, começou a colocar algumas restrições nesse reconhecimento da multiparentalidade em cartório de registro civil. Outra mudança importante dessa norma foi que desde então só é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, ou seja, não dá mais para uma criança ter dois pais e duas mães, apenas dois pais e uma mãe ou vice-versa”, explica a presidente da Adfas.

Socioafetividade e casais LGBT

A paternidade e maternidade socioafetiva é um assunto de amplo interesse de casais LGBT, que veem no tema a possibilidade de registrar filhos não biológicos em seus nomes. O próprio Provimento Nº 63 foi publicado após pressão de movimentos LGBT, que reivindicavam a flexibilização do registro de crianças geradas por meio de inseminação artificial.

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Além da tentativa de registro de crianças geradas a partir de reprodução assistida, a socioafetividade é utilizada em casos, por exemplo, em que uma mulher que já tem um ou mais filhos de um casamento anterior se separa do companheiro, une-se a uma mulher, e a nova companheira deseja registrar a filiação da(s) criança(s) também em seu nome. Da maneira como a legislação está atualmente, em situações desse tipo – da mesma forma que para casais heterossexuais – se a criança tiver menos de 12 anos será possível demandar a filiação socioafetiva unicamente pela via judicial.

“A regra existe para registros de crianças com mais de 12 anos. Para situações diferentes desta, será preciso tentar resolver na Justiça. A regra é a paternidade biológica, a exceção é a socioafetiva. Então a Justiça pode excepcionalmente conceder a filiação dependendo do caso”, aponta Roque.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]