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O Museu da Língua Portuguesa será reaberto neste sábado (31) após passar por um longo período de reconstrução devido a um incêndio de grandes proporções que atingiu suas dependências em dezembro de 2015.
Localizado na Estação da Luz, no centro histórico de São Paulo, o museu é uma das principais instituições culturais do país. O local já recebeu quase quatro milhões de visitantes, dezenas de exposições e doze premiações, inclusive internacionais. Entre os homenageados com exposições estiveram escritores como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Machado de Assis e Fernando Pessoa.
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Mesmo representando um grande patrimônio histórico e cultural brasileiro, o Museu da Língua Portuguesa será reaberto a partir de um novo posicionamento. No dia 12 de julho, o perfil oficial da instituição publicou nas redes sociais uma mensagem em que faz referência a uma “nova fase” a ser vivida pelo museu a partir da reabertura. Para isso, recorreu à linguagem neutra utilizando a palavra “todes”, que não consta nos dicionários nem no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), da Academia Brasileira de Letras.
A referência à linguagem neutra (chamada também de linguagem não binária) atende à demanda de ativistas pela neutralização da língua. Defensores da mudança pedem o fim do binarismo do idioma português, isto é, a existência de somente dois gêneros: feminino e masculino. Para isso, propõem a criação de novas palavras, como “todes”, “menine”, “elu” e “elx”.
A medida, que teria como objetivo incluir pessoas que se autodeclaram não binárias, ou seja, que não se reconhecem nem como mulher nem como homem, é alvo de críticas por parte de linguistas e professores da língua.
Secretaria de Cultura de São Paulo e diretoria do museu apoiam linguagem não binária
A permanência da publicação com uso de linguagem neutra mesmo diante de uma enxurrada de comentários críticos à postagem sinaliza que há força política em favor da abordagem do dialeto na nova fase da instituição.
O Museu da Língua Portuguesa é vinculado à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo – pasta chefiada por Sérgio Sá Leitão. Após a repercussão da postagem, o secretário passou a usar suas redes sociais para defender a abordagem da linguagem não binária e discutir publicamente com usuários que se manifestaram contra a ação.
Apesar de a linguagem neutra ser rechaçada por linguistas e professores, principalmente da educação básica, o secretário argumentou que a resistência ao uso do dialeto na comunicação oficial do museu se trata de “ódio à cultura” e “autoritarismo”. Em uma publicação, Sá Leitão sugeriu que o uso da linguagem tem algo de científico, o que é refutado por linguistas consultados pela reportagem.
Sob a tutela da pasta de Cultura, quem gerencia o museu desde 2012 é a organização social IDBrasil. A instituição também faz a gestão do Museu do Futebol. No dia 1º de setembro, o governo paulista assinou um contrato no valor de R$ 76,5 milhões prorrogando o vínculo com a entidade até 2025.
Desde o ano passado, entretanto, quem assumiu o cargo de diretora do Museu da Língua Portuguesa é a historiadora e museóloga Marília Bonas. Ligada a ativismo político, Marília já foi diretora do Museu da Imigração, do Museu da Resistência e do Museu do Futebol – todos localizados no estado de São Paulo. Ainda que se tratem de instituições públicas, nessas atuações a diretora sempre buscou abordar causas políticas alinhadas a suas convicções pessoais, ligadas ao movimento feminista e LGBT. Ela é uma entusiasta da linguagem neutra e costuma utilizar o dialeto em suas redes sociais particulares.
Em uma live realizada em junho deste ano, a diretora cita o uso dos museus gerenciados pelo IDBrasil como ferramenta política. “Passei a lidar com os desafios não só da pandemia, mas com uma aceleração de grandes questões que estão presentes tanto no Museu do Futebol quanto no Museu da Língua. Acho que a primeira grande questão é o Black Lives Matter”, diz a diretora. “Isso passou a nortear o trabalho no contexto dos dois museus”, destaca.
As causas apoiadas por Marília também são temas frequentemente abordados nos canais oficiais do Museu do Futebol, do qual ela foi diretora até recentemente.
A Gazeta do Povo solicitou ao IDBrasil uma entrevista com a diretora sobre o novo posicionamento atribuído ao museu, porém a organização informou que não seria possível atender a demanda.
A reportagem também pediu esclarecimentos à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo a respeito do novo posicionamento do museu e de qual será o espaço que a linguagem não binária ganhará no dia a dia da instituição, bem como em sua comunicação oficial. A pasta optou não respondeu às perguntas específicas sobre o tema e encaminhou a seguinte nota:
“O Novo Museu da Língua Portuguesa, instituição da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, cuja abertura é sábado 31/7, busca ter uma visão histórica, social e cultural deste idioma no Brasil. A instituição trata da longa história desta língua em transformação e as várias questões em discussão na sociedade. O Museu observa e acolhe as reações ao post como parte de um processo pautado pelo diálogo e pela construção coletiva em torno desse patrimônio cultural que une a todos”.
Especialistas em língua portuguesa rechaçam uso de linguagem neutra
Para Cíntia Chagas, professora de português e autora de dois best-sellers sobre a língua portuguesa, a linguagem neutra não possui caráter científico e se trata de um modismo defendido por grupos de ativismo político. “Quando uma instituição como o Museu da Língua Portuguesa aceita isso, ele abre portas para que outras pessoas que não entendem do que realmente se trata achem isso natural, o que é equivocado”, aponta.
Cíntia chama a atenção para a incoerência linguística do dialeto defendido pela diretoria do museu. A professora explica que no latim, do qual é derivado o idioma português, há os gêneros masculino, feminino e neutro. “Na passagem do latim para o português, o que era neutro virou masculino. Por isso escreve-se, por exemplo, que ‘todos estão satisfeitos’ quando se trata de masculino e feminino. Não é preciso escrever ‘todos e todas’, porque o que era neutro no passado tornou-se gênero masculino”, observa.
Devido a isso, aponta ela, defender a linguagem neutra significa ignorar a própria história da língua. “Chega a ser um paradoxo: quando um museu, que tem a obrigação de preservar a história da língua utiliza esse dialeto, ele está desconstruindo essa história”, ressalta.
De acordo com Kátia Simone Benedetti, professora de português e autora do livro “A falácia socioconstrutivista: por que os alunos brasileiros deixaram de aprender a ler e escrever”, a argumentação de que a linguagem não binária advém da evolução natural do idioma é equivocada, uma vez que tais mudanças são artificiais e, portanto, inconsistentes com a própria natureza estrutural da língua.
“A língua é independente da vontade humana, política ou ideológica. Ela muda por seus próprios meios e estes se baseiam em necessidades concretas, do dia a dia”, afirma a docente. Kátia exemplifica dizendo que, com o advento das tecnologias, novas palavras foram sendo criadas e incorporadas à língua devido a demandas concretas, a exemplo de ‘clicar’, ‘postar’, ‘tuitar’, entre outras, assim como outras foram adquirindo novos significados, como ‘curtir’, ‘baixar’ e ‘abrir’ (arquivos).
“Uma vez que essas mudanças acontecem assentadas nas necessidades concretas, elas não são incoerentes ou inconsistentes com o restante da estrutura linguística. Mas as alterações impostas, como essa do gênero neutro, sim”, diz a professora.
Cíntia endossa esse entendimento. Segundo ela, as evoluções da língua, como o tradicional “vossa mercê” – que, com o passar das décadas, tornou-se “vosmecê” e, posteriormente, “você” –, tratam-se de mudanças naturais e não impostas. “Não houve uma imposição por parte de grupos. Essas mudanças na língua devem ocorrer naturalmente”, diz.
“Nossa língua tem marcação binária, e esse fato não pode ser mudado apenas pela vontade de um grupo social”, reforça Kátia. A professora avalia que esse tipo de adesão, por parte de museus e escolas, gera um efeito negativo, pois fomenta a negação da própria natureza da língua e, portanto, de seu ensino e aprendizado nas instituições de ensino do país.
“Ter uma instituição como o Museu de Língua Portuguesa mostrando-se a favor desse tipo de imposição só vem mostrar como muitas instituições que deveriam zelar pela história da nossa língua e pelo seu ensino adequado, têm se deixado levar por
banalidades irrelevantes e desconectadas da realidade do povo brasileiro”, ressalta.