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As letras de duplo sentido são coisa do passado no mundo do funk. Com cada vez mais frequência, crime, drogas e sexo têm sido tratados de forma crua para uma audiência de milhões de pessoas e com a simpatia do chamado mainstream cultural. Além dos perigos da influência nociva sobre os mais jovens, o fenômeno traz à tona a relação entre facções criminosas e artistas do mundo do rap — ou dos seus subprodutos funk e trap.
A existência dos chamados funk “proibidões”, que exaltam o crime, não é nova. A novidade é que a apologia à atividade criminosa deixou de ser algo amador, quase secreto, para atingir um público gigantesco e ganhar a legitimação de parte do establishment cultural — sem serem incomodados pelo Judiciário e das plataformas como o YouTube, que costumam ser mais ágeis ao sancionar quem questiona a eficácia das vacinas ou a confiabilidade da urna eletrônica.
Os exemplos se multiplicam
O carioca Marlon Brendon Coelho Couto da Silva, conhecido como MC Poze do Rodo, é um dos principais nomes do rap nacional. Poze é amigo do jogador Gabigol, tem 7,6 milhões de seguidores no Instagram e, em 2021, participou até mesmo do jogo das estrelas de fim de ano, organizado pelo ex-jogador Zico e transmitido pelo canal Sportv. Acontece que, para a polícia do Rio, Poze do Rodo é mais do que isto: ele é um porta-voz do Comando Vermelho.
E não é difícil dar credibilidade a esta tese. Não só porque ele já apareceu, de fuzil em punho, ao lado de criminosos da facção, ou porque ele faça apresentações em áreas onde o tráfico de drogas detém o monopólio dos bailes funk, mas porque o próprio Poze do Rodo faz questão de proclamar sua ligação com o crime.
E uma de suas músicas mais populares, “Cara do Crime”, os versos iniciais são estes:
“Ela fala que quer crime e eu sou criminoso. Ela é da Zona Sul e eu sou cria do Rodo”
Na letra, assim como faz em boa parte de suas músicas, Poze do Rodo também pede “liberdade aos amigos”, em referência aos aliados que estão na prisão.
O videoclipe da música tem 258 milhões de visualizações no YouTube. O sucesso levou Poze do Rodo a lançar duas partes para a música, em parceria com outros rappers. Na parte 3 (que teve 36 milhões de visualizações até agora), as referências ao crime organizado são ainda mais diretas.
No videoclipe, o rapper Bielzin aparece no alto do morro, em uma laje, com um radiocomunicador nas mãos e uma mochila nas costas. É o estereótipo do soldado do tráfico. Ele canta:
"É a melhor gestão
Complexo dominando o alto igual falcão
Fazendo a ronda com os crias"
“Gestão” é como os defensores das facções criminosas se referem ao grupo de traficantes que controlam uma área específica. Nesse caso, o Complexo do Alemão, cuja “gestão" é do Comando Vermelho.
A poesia segue:
“Fazendo a ronda com os cria
Na atividade dobrada
Mil e duzentas no porte do homem
Se tentar contra nós, tu se f.”
A canção também tem a participação de Filipe Ret, que acabou de lançar uma música com a cantora Anitta. Ele aparece entoando os seguintes versos:
“Queimando um no meio-fio
Desse perfume eu vendo quilo”
Os versos se referem ao uso e tráfico de maconha. Para quem tem alguma, Filipe Ret faz questão de deixar claro:
“A cara do chefe do crime perfeito
Fala o que quiser, nós é exemplo mermo”
O que talvez seja ainda mais chocante é que o vídeo tem o patrocínio da Blaze, um site de apostas que, além de youtubers, é o principal patrocinador da equipe do Botafogo. No videoclipe, entre ameaças aos inimigos e versos de exaltação própria, os artistas aparecem utilizando o aplicativo da Blaze.
“A Cara do Crime” foi produzido pela Mainstreet, uma gravadora que tem perfil verificado no YouTube. A empresa foi criada pelo rapper Orochi e apresenta um longo catálogo de músicas com apologia ao crime — todas elas com grande audiência no YouTube.
Em uma canção batizada de “Quebra Osso”, por exemplo, é possível encontrar ameaças aos “pilas” — aparentemente, uma referência à polícia.
“Eu tô de glockada, com a mochila cheia de pente
Dois ar e os cobertura na cautela, nós foi pela linha amarela
Da janela eu vi os pila, mas o carro não é blindado
Se eles vim tentar dar bote é duas pra baixo, eu largo o aço”
Outra produção da gravadora, “Carro Forte”, descreve um assalto a um carro forte de forma detalhada.
"É só pitbull de raça
Se reagir nós te passa" (mata).
O vídeo tem mais de 45 milhões de visualizações. O clipe exibe exatamente o que a letra descreve: armas e mais armas, seguranças sendo feito reféns e os criminosos celebrando o assalto. Assim como quase todas as músicas que exaltam a atividade criminosa, a letra de “Carro Forte” inclui menções pouco lisonjeiras às mulheres, que são apresentadas como interesseiras e descritas em termos vulgares.
A Mainstree não é uma gravadora marginal. O canal do grupo no YouTube tem 2,2 milhões de inscritos e o selo de verificação da plataforma. Em março deste ano, o jornal O Globo fez uma reportagem elogiosa à Mainstreet com o título de “Gravadora carioca faz sucesso unindo trap dos EUA com o funk da favela”.
A tolerância com a apologia ao crime parece estar se tornando cada vez maior. Em 2019, a cantora Ludmilla fez uma música exaltando maconha – não só o uso, mas o comércio da droga – e isso não tirou dela o espaço como atração na TV Globo. A letra de “Verdinha”, que não exige maiores explicações:
“Eu fiz um pé lá no meu quintal
Tô vendendo a grama da verdinha a um real
(…)
Fiquei loucona, chapadona
Só com a marola da 'juana”
Ludmilla teve a oportunidade de entoar estes versos em rede nacional, no programa Encontro com Fátima Bernardes. Talvez o interesse comercial explique as vistas cegas à apologia ao crime. Segundo o Spotify, o funk foi o segundo estilo mais ouvido entre os brasileiros em 2021, atrás apenas do sertanejo.
Relações criminosas
Para João Henrique Martins, cientista político especializado em economia ilícita e controle do crime, o rap brasileiro está profundamente ligado à urbanização acelerada e desordenada na segunda metade do século 20. Ele diz que, em sua forma original, o estilo falava sobre o crime, que era parte da realidade das periferias, mas não exaltava o crime. Isso mudou a partir dos anos 1990, por dois motivos. Em primeiro lugar, a expansão do poderio econômico das facções criminosas, que passaram a financiar diretamente a indústria do rap e do funk. Em segundo lugar, o avanço do relativismo cultural, promovido de diversas formas, mas sempre retirando a responsabilidade moral dos indivíduos.
Na opinião de Lucas Azambuja, doutor em sociologia e professor do Ibmec, o que se vê no rap brasileiro e no funk, que tem uma gênese parecida, também precisa ser visto como um eco das suas versões originais, vindas da cultura de periferia americana —- onde referências ao crime são comuns. “São estilos nascidos nos Estados Unidos e lá também cantores desses estilos abordaram esses temas de modo semelhante ao que vemos no Brasil. Então, há uma influência da absorção do próprio estilo e ao mesmo tempo a sua adaptação à realidade social brasileira”, diz ele.
Azambuja afirma não haver elementos suficientes para se falar em uma “cultura pró-crime” impulsionada pelo rap e o funk. “A música tem sido uma forma de expressão que muitas vezes visa chocar e causar algum tipo de impacto. E de fato, a questão da criminalidade perpassa toda a sociedade, seria estranho que nenhum estilo musical expressasse essa questão”, diz ele.
Mas Martins, que também é oficial da reserva da Polícia Militar de São Paulo e foi pesquisador do Núcleo de Políticas Públicas da Universidade de São Paulo (USP), afirma que de fato existe um discurso que justifica a atuação dos criminosos e a promoção de uma cultura à margem da lei. Ele explica que a corrente teórica chamada de Criminologia Crítica, popular nas faculdades de sociologia, sustenta um discurso que legitima a atuação dos criminosos. “Os adeptos das teorias críticas não têm nenhum compromisso com a realidade ou com valores sociais, como a defesa da vida e a proteção das vítimas. Desta forma, crimes como racismo e homofobia devem ser punidos com prisão, pois as vítimas coletivas (negros e homossexuais) são politicamente importantes. Já os autores de crimes como tráfico de drogas ou roubo, não devem ser punidos porque foram primeiro vítimas da sociedade”, ele explica.
Para Luiz Fernando Ramos Aguiar, especialista em segurança pública e Major na Polícia Militar do Distrito Federal, o interesse das facções criminosas ao promover os bailes funk e financiar os artistas do gênero vai além do aspecto financeiro. “O financiamento de artistas e de eventos é fundamental para o fortalecimento da imagem dos traficantes como defensores de suas comunidades. Na ausência de opções de lazer e de eventos culturais, sejam financiados pela iniciativa privada ou promovidos pelos governos locais, os marginais firmam sua posição como benfeitores”, diz ele. “Dessa forma, eles criam um ambiente cultural que acaba fazendo com que muitos moradores acabem se tornando defensores das quadrilhas”, complementa. Além disso, esses eventos acabam servindo para recrutar jovens para as fileiras do tráfico.
Martins concorda: “Criminosos que exercem controle territorial, especialmente traficantes de drogas, têm custos econômicos e sociais para manter um território sob controle, pois o caos pode ser útil para tomar um território, mas não para mantê-lo. Para isso eles precisam "imitar o papel do Estado, como garantidor do contrato social’ em alguma medida", ele afirma, antes de prosseguir: “Isso significa que não basta controlar formalmente, no caso deles pelo crime e o terror, é preciso estabelecer algum nível de soft power, ou controle informal, aquele exercido pelo compartilhamento de valores e regras sociais”. A diferença é que, com a internet, a exaltação do tráfico foi além das áreas comandadas pelo crime.
Na opinião de Aguiar, a solução para o problema não depende apenas da ação policial, mas também de uma mudança cultural e educacional — o que não é simples. Ainda assim, diz ele, uma legislação mais rigorosa alteraria o cálculo de custo-benefício feito por quem cogita ingressar nas fileiras do crime organizado. “Mudanças legislativas que levem a punições mais severas aos criminosos são imprescindíveis para que os jovens que estão tentados a aderir às quadrilhas entendam que as consequências desse estilo de vida não compensarão as vantagens”, diz ele. Martins tem a mesma opinião: “Cometer crimes, ainda que seja limitado a apologia, não pode valer a pena”, ele defende.
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