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Os ditos progressistas têm, em geral, um especial apreço pela obra do filósofo Michel Foucault; conservadores, por sua vez, torcem o nariz mal escutam o nome do pensador francês ou de um dos seus muitos discípulos. Em tempos normais, essa afirmação soaria demasiado óbvia, quase consensual. Todavia, coisas muito estranhas ocorreram no planeta ao longo destes meses pandêmicos. Inexplicavelmente, foucaultianos e simpatizantes, em meio à confusão sanitária geral, deixaram totalmente de lado uma das mais salientes obsessões do pensador francês, justo aquela relacionada diretamente ao drama que o mundo vivia: o tal biopoder, isto é, o uso do medo da morte e da promessa de uma vida longa (saudável) como um mecanismo eficaz de controle social.
Ora, o que se viu durante o corre-corre e a guerra de informações gerados pela pandemia foi uma verdadeira “inversão de valores”. Especialistas que passaram a vida escrevendo e gritando contra todo tipo de encarceramento (de loucos em hospícios, de presos em cadeias, de operários em vilas, de drogados em centros de recuperação, etc.) vieram a público pedir freneticamente que o estado atentasse contra as liberdades individuais e obrigasse cidadãos saudáveis, lúcidos e honestos a mofarem em suas casas ou a de lá saírem somente em casos excepcionais e devidamente mascarados – medida que, até se prove o contrário, parece mais moral do que sanitária.
Críticos incansáveis da ciência ocidental, aquela produzida pelo homem branco e dominador, de uma hora para outra, tornaram-se positivistas ferozes e cobraram testes de segurança – dentro dos bons padrões da ciência clássica – para medicamentos utilizados há décadas e consumidos aos montes, e sem receitas médicas, pela população. Pior ainda: inúmeros defensores dos denominados “saberes alternativos sobre a doença e a cura” (aqueles produzidos por parteiras, curandeiros, naturalistas etc.) puseram em xeque, lançando mão de uma ideia quase mística de ciência, exagerada até mesmo para os positivistas mais convictos, a experiência clínica – empírica – de médicos e enfermeiros.
O mais bizarro, porém, ainda estava por vir. Um vírus qualquer da incoerência tomou conta daquela gente que tinha a Big Pharma em péssima conta, daquela gente que, atenta aos ensinamentos de Foucault, desconfiava do uso que tais empresas faziam do vasto conhecimento que detinham sobre os corpos humanos; mas também daqueles céticos que, por razões as mais variadas, até há algum tempo atrás, desconfiavam e falavam horrores de imunizantes testados e aprovados há décadas. Mal se aventou a possibilidade de uma vacina para o vírus de Wuhan e esses precavidos e críticos de outrora, em meio a cânticos de louvor às indústrias farmacêuticas, exigiram vacinas para todos, inclusive para os que não queriam, não precisavam ou não podiam tomar a poção mágica ofertada pelos laboratórios. Não contentes, num derradeiro gesto de adeus a Foucault, saudaram com júbilos de alegria o passaporte sanitário, um instrumento nada desprezível de “governo dos outros” – como diria o já esquecido filósofo.
Por uma ironia do destino, coube, neste mundo de ponta-cabeça, aos denominados conservadores comungarem de algumas das preocupações de Foucault e, por razões que certamente não são as mesmas do pensador francês, lançar um olhar de desconfiança sobre os poderes constituídos e sobre as políticas que estavam implantando para combater a pandemia e supostamente garantir a vida dos cidadãos. Foram pessoas taxadas de egoístas e individualistas – e também de inescrupulosas e desprovidas de empatia – que, sem muito sucesso, advertiram sobre os perigos de permitir que o estado adotasse medidas sanitárias de eficácia duvidosa, mas que inquestionavelmente atentavam contra as liberdades individuais, contra o sagrado direito de ir e vir dos cidadãos. Foi gente com pouco apreço por Foucault e por suas críticas à ciência ocidental que apontaram o uso mistificador que se estava fazendo dessa mesma ciência, que apontaram a deslegitimação sistemática então em marcha da experiência clínica e mesmo a censura que se impunha aqui e ali a certos temas trazidos a público por médicos e cientistas que não engrossavam o coro geral. Foram surpreendentemente críticos que jamais pensaram que doenças imaginárias eram criadas pela indústria farmacêutica para vender medicamentos – ou que vacinas testadas eram substâncias duvidosas inoculadas autoritariamente em nossas crianças – que levantaram uma bandeira amarela para a segurança e eficácia de vacinas desenvolvidas em meses, vacinas experimentais que pareciam estar sendo impostas de uma maneira muito afoita a toda a população do país. Para completar a total inversão de valores e tornar o ambiente ainda mais esquisito, foram indivíduos apontados como simpáticos à opressiva ordem burguesa liberal que saíram por aí conclamando as pessoas a não aceitarem passivamente uma medida que tem todo o jeito de ser um instrumento poderoso de controle social: a exigência do controverso comprovante de vacina – aquele mesmo que muitos progressistas se orgulham de ostentar nas redes sociais.
Enfim, é realmente uma sociedade complicada esta que construímos no Ocidente: parece que todas aquelas partilhas que utilizávamos ainda ontem e que tornavam o mundo tão bem delineado e compreensível já não servem mais para nada.
* Jean Marcel Carvalho França é professor Titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista (Imprensa nacional - Casa da Moeda, 1999), “Visões do Rio de Janeiro Colonial” (José Olympio, 2000), “Mulheres Viajantes no Brasil” (José Olympio, 2008), “Andanças pelo Brasil colonial” (Editora da UNESP, 2009), “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII” (José Olympio/Editora da UNESP, 2012), “Piratas no Brasil“ (Editora Globo, 2016) e “Ilustres Ordinários do Brasil” (Editora da UNESP, 2018).