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Não é de hoje que a corrupção se tornou uma realidade que faz parte da vida do brasileiro. Espaços políticos e até mesmo os mais comuns da vida em sociedade parecem estar impregnados por ela e os danos causados são graves.
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Há algum tempo, o Brasil recebe alarmantes diagnósticos com relação aos níveis de corrupção e suas consequências. O último relatório da Transparência Internacional - o indicador mais utilizado para medir a corrupção das nações - colocou o Brasil na posição 94 do ranking, abaixo, inclusive, de Cuba. Com base em outros indicadores disponíveis, não há a menor dúvida de que a corrupção tem impactado diretamente o desenvolvimento econômico e social do país.
Mas, apesar da desesperança, ainda há quem acredite e trabalhe para que o Brasil seja diferente. Preocupada com o avanço da corrupção, a promotora de justiça Luciana Asper y Valdes, um dos principais nomes do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), lidera o projeto "NaMoral", nascido no coração do MP, que tem como objetivo educar as novas gerações para o verdadeiro sentido e valor da integridade e das virtudes. O projeto foi construído por uma iniciativa coletiva de vários membros, servidores e voluntários especialistas em psicologia, pedagogia, comportamento humano e neurociência. Ele ganhou o segundo lugar no Prêmio CNMP, edição 2020, na categoria “Redução da corrupção” e foi selecionado para participar da 17ª edição do Prêmio Innovare.
Luciana concedeu entrevista exclusiva à Gazeta do Povo e explica um pouco mais sobre o "NaMoral" e a cultura de integridade, que dá a base para todo o trabalho realizado pelo projeto em Brasília.
Confira a entrevista na íntegra:
Integridade: a arma correta e concreta contra a corrupção
Luciana Asper y Valdes: Para entender com profundidade o "NaMoral", precisarei me deter primeiro ao tema da integridade, fundamento para a criação do projeto.
Diversas pesquisas nos mostram que a prioridade do Ministério Público deve ser o combate à corrupção e a defesa do patrimônio público. Outras análises apontam que o brasileiro entende que seu maior problema é a corrupção. Claro que aqui estamos falando em condições normais de temperatura e pressão - se considerarmos o nosso contexto atual, provavelmente, a prioridade seria a saúde pública. Apesar disso, todos já entenderam que o "problema-mãe" do país se chama corrupção e dele decorrem todos os outros: a miséria, a falta de emprego, a ausência de uma boa educação, um sistema de saúde precário, problemas de infraestrutura, etc.
Apesar dessa consciência, o que a população ainda não entende é a necessidade de uma intransigência à corrupção, e aqui entra o tema do enfrentamento a esse problema cultivado nos estudos baseados em tratados internacionais. A Declaração de Doha, a Convenção de Mérida e a própria OCDE, por exemplo, através do trabalho de recomendação de integridade pública, defendem que o mecanismo e instrumento sustentável de enfrentamento à corrupção é a cultura da integridade; uma cultura de intransigência à corrupção que precisa acontecer por meio de um processo de ação coletiva, envolvendo todos os seguimentos da sociedade civil. Esses devem estar conscientes dos danos e do quanto é impossível uma nação progredir e se falar em fraternidade humana e bem-estar coletivo sem o combate à corrupção.
Vergonha da honestidade
Luciana Asper y Valdes: É imprescindível formar pessoas intransigentes à corrupção e protagonistas de um controle e participação social no acompanhamento das políticas públicas. Eventualmente, essas pessoas vão ocupar as instituições públicas que conduzem tanto ao controle quanto à repressão. Se precisamos de leis melhores, é preciso de pessoas intransigentes, que estão absolutamente comprometidas com uma cultura de integridade e intolerantes a qualquer tipo de corrupção. É preciso de uma advocacia que realmente se coaduna com o próprio código de ética da OAB; magistrados e cortes superiores que julguem de acordo com a justiça e o bem comum; de um Ministério Público comprometido com a priorização do combate à corrupção; órgãos do Executivo, Legislativo e Judiciário que tenham esse espírito de intransigência à corrupção, porque senão as boas leis aprovadas e decisões tomadas estarão vulneráveis à tolerância à corrupção e a uma cultura da impunidade e benevolência que destrói os avanços conseguidos.
Ruy Barbosa, em 1914, em um de seus discursos no Senado, dizia: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se o poder na mão dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto."
Corrupção é escravidão em pleno século XXI
Luciana Asper y Valdes: O clamor pela construção de uma cultura de integridade não é de hoje. O grito pela construção de uma cultura de intolerância à corrupção é muito antigo. Eu comparo isso à escravidão; mas uma escravidão ainda pior do que a escravidão expressa, pela qual fomos libertos com a Lei Áurea.
O desafio que temos hoje é entendermos que a escravidão à corrupção e à impunidade está dentro de nossa mente. Se nós não tirarmos a corrupção de dentro de nós ou - quando muito, a tolerância à corrupção e à impunidade - seremos eternamente escravos. Reparem que eu estou trazendo um discurso de 1914, no entanto, é totalmente atual. Mas por que nada mudou?
Temos algum corrupto de 100 anos em nosso meio? Nascemos, ocupamos as escolas, os órgãos e instituições públicas… Por que parece que os anos passam e não saímos do lugar na luta contra a corrupção?
É preciso ter um sentido de urgência para dar a largada na trilha de uma formação estratégica e intencional de pessoas comprometidas com a ética, com a integridade, com as forças de caráter, com as virtudes e valores e, acima de tudo, com uma vida coerente com tudo isso.
Nascimento do Projeto "NaMoral"
Luciana Asper y Valdes: O projeto "NaMoral" nasce dessa consciência: de que a transformação que precisamos é muito mais profunda do que imaginamos. Sua história começa no ano de 2004, a partir de um projeto do MP de Santa Catarina, que começou com uma campanha chamada “O que você tem a ver com a corrupção?”. Essa campanha traz uma reflexão de que existe um problema nosso e que exige uma ação concreta de nossa parte.
Em 2015, eu e outros colegas no MP de Brasília começamos a realizar um evento padrão com diversos vídeos e reflexões sobre o tema da corrupção. O projeto começou com um trabalho voltado para os alunos, mas depois notamos que a estratégia que dava mais certo era trabalhar diretamente com os professores, embora ainda fôssemos para a escola para encontros com os alunos. Começamos a promover grandes formações com os professores e vimos eles abraçarem a ideia do "NaMoral" e implementar as dinâmicas no dia a dia dos alunos.
Atividades práticas e com valores para combater a corrupção
Luciana Asper y Valdes: Em 2018, a partir de todas as nossas experiências, desenvolvemos uma metodologia em que membros, servidores do MP e voluntários universitários iam até as escolas para realizar experiências e vivências, missões e rodas de conversa, para debater todo esse tema relacionado a integridade e corrupção.
Hoje, o "NaMoral" utiliza atividades ‘gamificadas’, os mesmos encontros e rodas de conversa, palestras e atividades, com a ideia de promover o autoconhecimento e um aprendizado por vivências e práticas de valores e virtudes essenciais. Tudo isso para que o jovem busque uma vida relevante com integridade, ética e cidadania plena. Com isso, desenvolvemos sua inteligência crítica - no sentido de se perguntar se estou sendo coerente com meus valores - e a capacidade criativa.
Nosso propósito é levar o ser humano a uma melhor versão dele mesmo. O mais desafiador de tudo isso é que estamos diante de um ecossistema que funciona do jeito oposto. E neste processo todo consideramos alguns valores principais e buscamos sempre trabalhá-los durante as atividades nos colégios. Valores como trabalho em grupo, integridade, justiça, honestidade, responsabilidade, empatia, fraternidade, humildade e generosidade.
Restauradores da integridade
Luciana Asper y Valdes: Uma das missões do "NaMoral" nas escolas traz a ideia de restaurar algo. Trabalhamos três pilares essenciais para a efetividade do projeto. O primeiro deles é o Embaixador da Integridade, em que trabalharemos a integridade da própria pessoa, em que buscamos estimular uma autorreflexão sobre atitudes e valores próprios dos alunos.
O Influenciador da Integridade é o segundo pilar, ou seja, como eu posso influenciar o próximo e todos que me relaciono: poder público, comércios? Cobrando a integridade dessas esferas. Quando chego em um estabelecimento e a pessoa me pergunta ‘com nota ou sem nota?’. A ideia é influenciar as pessoas de forma positiva para que não pratiquem essas pequenas corrupções do dia a dia. Se queremos líderes íntegros, nada mais natural que nossa relação com as esferas da sociedade seja honesta, franca e correta.
O terceiro pilar é o do Restaurador de Danos. Ele entende que o que nós estamos vivenciando hoje é fruto de uma semeadura por omissão. Ele estará disposto a restaurar e recuperar os estragos feitos e os maus frutos de todo esse problema da corrupção e da falta de integridade. Primeiramente de forma concreta, restaurando, por exemplo, o patrimônio da escola que foi danificado, mas, num segundo momento, aproveitando de um dom e um talento, que todos nós temos, para servir ao próximo. Então, se eu sou bom em esporte, em música, com tecnologias, eu compartilho esse meu conhecimento em diversas oficinas. Se vejo que um amigo está com dificuldade em uma matéria específica na escola e eu posso ajudá-lo, me colocarei à disposição.
A transformação começa pelas pessoas
Luciana Asper y Valdes: Desde o ano passado, temos trabalhado em conjunto com a Secretária de Educação [do Distrito Federal] para construir matérias dentro do currículo pedagógico oficial do novo ensino médio. Trilhas de aprendizagem e eletivas orientadas para aprofundar todos estes temas.
Nós, do "NaMoral", acreditamos muito na força do projeto, pois já tivemos transformações extraordinárias nos microssistemas. Escolas que, por exemplo, conviviam com o problema de atrasos de professores, patrimônios totalmente destruídos, uma forte sensação de insegurança, foram totalmente transformadas simplesmente pela mudança de posturas dos diretores.
Trabalhamos com um caso em que a escola havia recebido um abaixo-assinado para fechar as portas. Era uma escola de notória problemática, convivia com brigas entre alunos e dificuldade com casos de drogas. Hoje, ela se transformou numa escola reconhecida como parceira pela comunidade.
A mudança é extrema. Acreditamos que o "NaMoral" venha a ser ampliado para todos os municípios com o apoio do Ministério Público e da sociedade civil, além das secretarias de educação e escolas particulares. Esperamos que o projeto possa tomar conta dos ambientes escolares, como algo que permeia e oferece apoio inclusive aos pais dos alunos, diretores e servidores públicos.
O "NaMoral" é um passo significativo para começarmos a ver mudanças acontecendo nas escolas, nas casas das pessoas e nas instituições. A partir disso, veremos um ambiente favorável para melhorar as leis e a forma com a qual conduzimos o nosso sistema de justiça. Teremos melhores gestores, tanto para as instituições públicas quanto para as privadas. Mas não conseguiremos nada disso se a transformação não começar pelas pessoas.