Em 13 de maio de 2013, durante um evento do núcleo de Jornalismo e Ditadura Militar, da UFPR, a jornalista e pesquisadora Elza de Oliveira Filha, que atua na Universidade Positivo, lançou um desafio: já são horas de estudar a importância do jornal Voz do Paraná para a imprensa local durante os "anos do chumbo".
A declaração foi recebida com misto de surpresa e desdém. "A Voz...", como se dizia, era um semanário "catolicão" vendido nas paróquias depois da missa de domingo ou recebido nos lares confessionais, via assinatura. Embora não fosse propriedade da Cúria Metropolitana, seguia a cartilha da instituição. E a Arquidiocese de Curitiba estava a anos-luz de territórios de oposição ao regime, a exemplo da Prelazia de Conceição do Araguaia, onde atuava o "subversivo" dom Pedro Casaldáliga.
À primeira vista, o Voz do Paraná poderia ser tudo, menos um dos 300 jornais nanicos expressão da época que combateram a ditadura entre 1964 e 1979, ano da Anistia. O semanário curitibano, inclusive, não aparece nem nos rodapés de três importantes estudos do período, como Jornalistas e Revolucionários: nos Tempos da Imprensa Alternativa, de Bernardo Kucinski (Edusp, 1991); Jornalismo de Guerrilha, de Rivaldo Chinem (Disal, 2004); ou Resistir É Preciso (2011), trabalho de fôlego do Instituto Vladimir Herzog, que fez 60 gravações em vídeo com jornalistas, designers e camicases do período.
A falta de referências, contudo, em vez de invalidar torna mais curiosa a provocação de Elza de Oliveira Filha pesquisadora reconhecida e ela mesma, mesmo tendo lido mais sobre Marx do que salmos, um dia frila em Voz do Paraná.
Às evidências: o jornal nasceu em 1956, da cabeça do arcebispo dom Manoel da Silveira Delboux, um entusiasta da Ação Católica e da imprensa como instrumento da propaganda da fé. Em seu posto anterior, no estado de São Paulo, o religioso comprou o jornal Diário de Notícias. Ter um impresso no seu novo endereço parecia natural. Assim se deu.
Na fase Delboux, a Voz... foi entregue aos missionários claretianos cujo missão inclui atuar nos meios de comunicação social e funcionava numa gráfica da Rua Nunes Machado, 975, atrás da Igreja do Coração de Maria, no bairro Rebouças. Além do noticiário e da rotina paroquiana, o jornal tinha como maior obsessão alertar contra os perigos do comunismo e, por tabela, dos comunistas infiltrados nas escolas e na política. A Revolução Cubana, em 1959, só aumentou a campanha.
Essa conversa só faz a curva em 1968, quando um grupo de médicos católicos membros da Congregação Mariana, em sua maioria compra dos claretianos o Voz do Paraná. À frente dos novos proprietários estava o radiologista Roaldo Amundsen Koehler, tão conhecido na cidade que se dizia que 90% da população tinha feito "chapas" com ele.
O fotógrafo e psicanalista Paulo Koehler, um dos sete filhos de Roaldo, acredita que o pai abraçara a medicina, mas que desejava mesmo era ser jornalista. Ainda guarda um jornal feito à mão nos tempos em que o radiologista estudava no Colégio Santa Maria. Em miúdos, a Voz..., que poderia ser uma ação pastoral e piedosa, nada mais, se torna a "razão de viver" do doutor Roaldo, tomando aqui emprestada a expressão famosa do publisher Samuel Wainer.
Roaldo chama para dirigir o semanário ninguém menos do que Aroldo Murá G. Haygert, espécime raro no jornalismo. Sabia latim. Conhecia encíclicas do Vaticano II. Estava gabaritado para ocupar a burocracia vaticana, caso fosse permitido, o que por certo adoraria. Talhado para o posto de diretor da Voz..., o professor Aroldo, como é chamado, mesmo sem ser uma unanimidade na classe, tinha outra qualidade: contratou para a pequena redação quem achava ter talento para as lides jornalísticas, à revelia da ideologia que professava. Fez história.
Lista
A "lista de Aroldo" inclui profissionais que passaram a ser banidos das demais redações do estado nos cinzentos dias do AI-5, a partir do final de 1968. De modo que mesmo sem ter sido a rigor um nanico revolucionário do naipe de Opinião, Movimento ou mesmo do similar católico O São Paulo, um dos muitos atos de coragem de dom Paulo Evaristo Arns, a Voz... abrigou a esquerda paranaense, nas suas mais diversas matizes. De iniciantes a iniciados, passando pelos festivos e distraídos.
No período mais pesado da repressão, passaram pelo jornal o então veterano Milton Ivan Heller, ex-Última Hora, "comunistão", hoje principal referência em jornalismo e ditadura militar no Paraná; esquerdistas respeitados, como Luiz Manfredini e Benedito Costa um foragido no Paraná dos comandos de caça aos comunistas; candidatos ao desbunde e à psicodelia, como o cartunista e cronista Dante Mendonça, o publicitário José Oliva, o poeta e jornalista Jaques Brand, o escritor Valêncio Xavier, Paulo Marins e Toninho Vaz, que viria a se tornar o biógrafo de Paulo Leminski.
O elenco explosivo passa por Francisco Alves dos Santos, Aramis Millarch, Walter Schmidt, Ruth Bolognese, Dinah Pinheiro Lima que morava no segundo andar da Casa da Estudante, o que dizia tudo sobre qual era a sua turma. E pela jovem ilustrada Maí Nascimento. Mesmo sem ser explicitamente de esquerda, Maí tinha voltado de um sabático na Europa trazendo na bolsa o Livro Vermelho de Mao. Estava apta a integrar a equipe da Voz, no qual foi uma das principais redatoras por cinco anos, editora de uma das pratas da casa o Roda Viva, página semanal de entrevistas. É com folga um dos melhores capítulos da imprensa paranaense.
Teresa
Ao passar o dedo na lista de chamada do semanário, os olhos param no ano de 1977, quando foi contratada Teresa Urban, símbolo da resistência à ditadura no estado, presa política e um caso típico de repórter sem emprego. Até o final de sua vida Teresa morreu em junho passado, aos 67 anos teve problema com o tal de Atestado de Bons Antecedentes. Ninguém queria contratá-la. Roaldo e Aroldo deram de ombros e a chamaram para a pequena redação da Rua Francisco Scremin, perto da Sociedade Urca.
Em depoimento dado aos alunos do curso de Jornalismo da UFPR, em abril do ano passado, Teresa Urban contou que tinha saído da cadeia, dois filhos para criar e precisava pagar as contas. "No final, vejam só, a Igreja me salvou", brincou. A jornalista ficou dois anos presa num convento das vicentinas graças à interferência de dom Pedro Fedalto. E teve seu primeiro emprego num jornal católico. Dali saltou para se tornar uma das pioneiras da imprensa ambiental e escritora de 20 livros.
Teresa, Manfredini, Heller, Dinah, Maí e outros guiaram a pauta de Voz do Paraná para a esquerda? Fica a pergunta sobre como Roaldo Koehler lidava com sua heroica redação talhada para a guerrilha e para a contracultura. E qual o papel do semanário numa imprensa que tendeu à autocensura e que deu pouco trabalho aos censores da Polícia Federal. Como bem alerta Elza de Oliveira Filha, já são horas...
A república socialista do doutor Koehler
"Ai meu Deus, essa Teresa ainda vai me dar dor de cabeça...", disse o médico radiologista Roaldo Amundsen Koehler, atirando-se ao sofá, ao se dar conta do que significava ter a ex-presa política Teresa Urban no quadro de funcionários de seu jornal, o Voz do Paraná. O episódio deve ter se dado por volta de 1977 e ainda hoje arranca gargalhadas do fotógrafo Paulo Koeher, filho de Roaldo.
Motivos, a rodo. Roaldo batizado assim em homenagem ao expedicionário que desbravou o Polo Sul, em 1911 era um católico aguerrido, desses prontos para o martírio. Nem mesmo os entreveros com a arquidiocese e a falta de apoio ao seu jornal amarelaram a fé. Congregado mariano, podia ser rotulado de um católico conservador. Execrava o comunismo. Respeitava o Vaticano. Tinha entre seus amigos o filologista Rosário Mansur Guérios e o poeta Tasso da Silveira. A justificativa para ter tantas Teresas nas suas fileiras era que se curvava a quem não pensava como ele e professava a justiça social.
De acordo com depoimento do jornalista Aroldo Murá, mesmo sendo um católico alinhado à direita, Roaldo tinha ligações com a turma do jornal católico O São Paulo um dos mais combativos da era da imprensa nanica. E recebia informações sobre os porões da ditadura por meio de um dos homens a quem mais admirava dom Paulo Evaristo Arns. Mesmo com tantas cascas de banana, escapou da vigilância do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops. Não foi fichado, confirmando a tese de Aroldo e companhia: quem desconfiaria de um homem como Roaldo? Chegaram a lhe perguntar "o que estava ganhando com aquilo...", mas ficou por aí.
Na vida comum, era homem de leitura, piedade, trabalho pesado foi secretário de saúde no governo Bento Munhoz da Rocha na década de 1950 e diretor clínico do Hospital Nossa Senhora das Graças. O que ganhava em espécie fazendo abreugrafias ia para seu sonho o jornal Voz do Paraná, obra que lhe consumiu todas as energias e economias. Quando se desfez da empresa, nos anos 1980, não tinha mais de onde tirar dinheiro. Morreu aos 66 anos, em 1981, quase cego, em decorrência de uma diabetes. Paulo não lembra de tê-lo visto sair de casa sem terno e gravata ou de ouvi-lo dizer palavrões. E se acha graça do "episódio Teresa", é porque poucas vezes viu Roaldo se destemperar.
"Ele gostava dos textos do Paulo Marins e do Jaques Brand. E destacava a inteligência do Aroldo Murá. Fazia um jornal. Trancava-se na sala dele para escrever editoriais, depois do expediente. Queria trabalhar com os melhores, era natural", lembra Paulo Koehler sobre um sujeito muito particular que, talvez sem querer, escreveu um capítulo da imprensa local.
Pequenas histórias da Voz do Paraná
ModernizaçãoAo ser chamado para trabalhar no jornal Voz do Paraná, no final dos anos 1960, o jornalista Aroldo Murá que trabalhava no Diário do Paraná, do grupo de Assis Chateaubriand, em Curitiba insistiu que era preciso superar a "mentalidade de igreja" e contratar profissionais e pagá-los. Chamou o jornalista Celso Nascimento, da Gazeta do Povo, e começou a formar uma equipe. Em pouco tempo, a Voz editava inclusive livros. A venda de assinaturas e venda avulsa em paróquias lembra Celso ajudavam na difusão. "Era o jornal da cidade que tinha mais pontos de venda", diz o jornalista, referindo-se às paróquias.
ColunasA estrutura da Voz do Paraná não tinha segredos. Trazia Aroldo Murá na superintendência, Celso Nascimento como editor chefe, e reportagem de Maí Nascimento e Benedito Pires. Só da série "Roda Viva" o jornal teria feito 300 entrevistas. Os demais jornalistas eram colaboradores, frilas, ocasionais. Havia também um bom time de colunistas, como Aramis Millarch e o futuro prefeito de Curitiba, Rafael Greca de Macedo. Sua coluna "Tempos Modernos" costumava atrair a ira de muitos leitores, inclusive do clero. Foi célebre a cena de um monsenhor. Irritado com uma crítica ao valor pago para casar nas paróquias, chutou a porta atrás de Greca e atirou uma pilha de jornais em uma mesa.O professor Aroldo Murá destaca, entre os que trabalharam para o êxito do jornal, nomes como Jubal Dohms, Szyja Ber Lorber, José Alberto Dietrich, Luiz Fernando de Queiroz, Osvaldo Nallim Duarte, Francisco José de Abreu Duarte e Lúcia de Fátima Nórcio.
Censura"Me achavam mais de direita. Eu era considerado insuspeito. Nunca frequentei quartel. Era um cristão solidário. Por não estar envolvido com ninguém, podia abrigar comunistas, sem levantar suspeitas", conta professor Aroldo Murá. Mesmo assim, a censura baixou na Voz do Paraná. Melhor, "os office-boys dos censores", corrige Celso Nascimento, sobre os funcionários do governo que vinham a mando das cúpulas da Polícia Federal. Com a decadência do regime, muitos tinham vergonha da tarefa de passar bilhetinhos sobre o que podia ou não podia falar. "Não raro, ficávamos sabendo de uma epidemia de meningite porque os censores nos avisavam, dizendo que o assunto não poderia ser publicado", lembra Nascimento. Golaço? A Voz falava de bispos rebeldes, como dom Ivo Lorscheiter e dom Tomás Balduíno, sem pedir licença. Os outros jornais não podiam fazer o mesmo.
FurosÉ heroica a lista de reportagens de peso da Voz do Paraná. O pequeno jornal da Rua Francisco Scremin ajudou a derrubar o governador Haroldo Leon Peres, em 1971 reciclando matérias censuradas em outros jornais e revistas, como a Veja. Denunciou o esquema de corrupção no Judiciário colaborando no afastamento de Alceste Ribas de Macedo, em 1972. Mostrou desvio de verbas de pesquisa na UFPR, com reportagem de Benedito Pires. Em entrevista ao "Roda Viva", em 1976, Affonso Camargo adiantou o projeto dos senadores biônicos um furo nacional, como lembram Celso Nascimento, Maí Nascimento e Aroldo Murá.
Voz ruralUm dos suplementos mais citados pelos que passaram pela Voz do Paraná é o "Cidade & Campo" talvez o primeiro no gênero na imprensa paranaense. Era do gosto do dono, doutor Roaldo, de colegas de redação, como Dinah Pinheiro Ribas. O projeto tinha assinatura de Jaques Brand, Elza de Oliveira Filha, Márcio Geenen e Casemiro Linarth os dois últimos falecidos, de acordo com informações de Brand.
Escola?A resistência à ditadura nos bastidores de Voz do Paraná é um tema para pesquisadores, mas não há como negar o caráter de escola de jornalismo do semanário. Essa é, inclusive, a tese do professor Aroldo Murá. Jornalistas como Dinah Pinheiro Ribas e Maí Nascimento concordam. Elas são capazes de citar inúmeras reportagens criativas, feitas de uma maneira incomum para a época a exemplo da entrevista de Maí com quatro crianças para saber o que elas pensavam da família, da escola, da vida. "Teve grande repercussão. Superou as expectativas", lembra a jornalista. A Voz..., concordam, era um jornal estimado pelos leitores. (JCF)
Fotos do acervo família Koehler