Em Umuarama, estrada é engolida por erosão| Foto: Reprodução Paraná TV

Parece história de pescador: a cada ano, como que brota do chão em Curitiba o equivalente a um bairro São Lourenço e um Centro Cívico inteiros, tinindo de novo, prontos para morar. A diferença é que além de não terem um lago ou um Palácio Iguaçu, esses lugares são verdadeiras fortalezas nas quais não se entra sem ser anunciado. São parte da cidade, mas também cidades à parte. Resta saber se essa dupla personalidade é virtude ou defeito.

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Não há como precisar o número de condomínios fechados construídos em Curitiba e região metropolitana em 30 anos – idade aproximada dessa inovação –, nem o tamanho da população encastelada. Por um simples motivo: esse dado é considerado irrelevante até pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Em tese, não altera a ordem do universo saber se um sujeito escolheu viver de frente para a rua e se prefere antes passar pela guarita. Mas a conversa muda de rumo caso se considere que a opção pelo condomínio – um luxo que ganha uma simpatia oceânica nas classes médias – serve de observatório para avaliar o grau de descontentamento com o país, em especial com a segurança pública.

Segundo dados da Secretaria Municipal de Urbanismo, em 2006 o número de alvarás para condomínios fechados foi três vezes maior do que as liberações para apartamentos. Soma-se 42 prédios residenciais – o equivalente a 762 "apês" – contra 2.859 residências em condomínios (veja gráfico). Dessas, 1.134 foram erguidas em áreas de padrão de médio para alto e 1.725 em padrão "médio-médio", digamos – aqueles conjuntos de sobrados, em terrenos contíguos, nos quais se constroem de 4 a 20 casas. É uma prova de que a área reservada deixou de ser privilégio dos chiques e famosos.

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Caso se tome como base a população de um bairro como o Alto da Glória, cujo número de habitações ultrapassa 2 mil unidades e tem população média de 5 mil pessoas, pode-se afirmar que um número semelhante de curitibanos tem se mudado para trás dos muros altos nos últimos quatro anos. A conta de 2003 para cá daria não menos do que 20 mil pessoas – o equivalente a uma Antonina ou uma Mandirituba inteiras. É gente de várias classes sociais, habitando moradias cercadas que vão do modesto bangalô ao palacete de Scarlet O’Hara. São figurantes de uma história que começou nas décadas de 60/70. Foi naquele tempo, em meio à ressaca da ditadura e do inchaço das cidades, que os mais abastados se mudaram para "jardins" distantes, seguros e planejados, a exemplo, em Curitiba, do Social, do Los Angeles e do Schaffer – hoje jurássicos sobreviventes de um mundo sem porteira.

Causa secreta

Não é difícil explicar as razões secretas que levam milhares a migrar para essas minicidades onde, diz-se, crianças podem andar de bicicleta, a roupa secar sossegada no varal e os vizinhos são só sorrisos. Segurança, área verde e relações sociais amistosas são, disparado, três boas razões para adotar o estilo de vida intramuros, hoje com endereço certo na capital. Segundo o engenheiro Reginaldo Cordeiro, 48 anos, diretor do Controle de Edificações da Secretaria Municipal de Urbanismo, as áreas preferidas são Santa Felicidade, Botiatuvinha, São Braz, Mossunguê, Vista Alegre, São João, Santa Cândida e Jardim das Américas.

A migração rumo à muralha só não é mais perfeita porque a era dos condomínios até pode encher os moradores de satisfação e fazer a alegria do mercado imobiliário, mas é vista com rabo-de-olho por urbanistas e sociólogos. A desconfiança diante de ruas limpas e cercadas de casas lindas ora vai para a chamada "geração condomínio" – expressão usada para denominar quem nasceu num desses cenários de cinema – ora para a evidente cisão que o formato promove entre o cidadão e o mundo real.

Tempos atrás, a filósofa Viviane Mosé, no quadro "Ser ou não ser?", do Fantástico, comparou os condomínios às cidades fortalecidas da Idade Média. O paralelo é impreciso do ponto de vista histórico, mas funciona. Em tese, encontrou-se uma solução medieval para se proteger dos conflitos sociais: o isolamento entre iguais, com um jardim no meio. Pode até ser uma medida de proteção, porém artificial, como caracteriza o antropólogo curitibano José Guilherme Magnani, idealizador do Núcleo de Antropologia Urbana (NAU) da Universidade de São Paulo (USP).

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Magnani não usa de meios-tons. Para ele, ao distanciar-se do cotidiano comum, os moradores se vêem sujeitos às regras estabelecidas para o funcionamento do condomínio – todas típicas de um prédio de apartamentos – e não às políticas públicas, cujo alcance é infinitamente maior. Não é difícil deduzir o estrago provocado por essa troca. A cidade empobrece, pois parte dos seus agentes vive um mundo reservado, comumente dotado de shoppings, escolas, faculdades, tudo por perto, ou pelo menos o bastante para apartar uma pá de gente de problemas que, até então, lhe dizia respeito. O abandono da classe média acentua a cruzada da violência, da miséria e da marginalidade. "Alegar que se quer garantir para os filhos uma vida de contato com a natureza ou coisa do gênero é saudosista. Os adolescentes têm os interesses do seu tempo. Será que eles querem morar num lugar assim?", provoca Magnani.

O pesquisador, contudo, não acha que o avanço dos condomínios seja o fim do mundo. Vê o fenômeno como nada mais do que uma variação para o tema e acredita que as áreas restritas não devem dominar o gosto da população por muito tempo. Ele cita outras tendências em voga, como a de se mudar para os cultuados centros velhos ou a de redescobrir bairros outrora degradados. A geógrafa paulista Olga Firkowski, 42 anos, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e estudiosa das mudanças provocadas pelas zonas industriais urbanas, também prefere não acender fogueiras. "Os condomínios têm a ver com o país que a gente vive. Só isso", ilustra, acenando a extensão do debate.

Olga já orientou projetos de alunos da UFPR sobre o tema, observa com lupa o comportamento do mercado imobiliário – particularmente em cidades como Londrina, onde a "condominização", de tão forte, já interfere no destino da cidade. A conclusão dos estudos é quase sempre a mesma. Um grupo tende a se separar, mas não sem antes pagar um pedágio social e psicológico sobre essa escolha, em especial nos modelos mais radicais, aqueles que incluem a casa protegida e todo o resto: escola, clube, shopping. "Faltam estudos mais profundos, mas há indícios de que a geração condomínio tende a tirar o pé da realidade", comenta.

Mas nada que roube o fascínio que o modelo fortaleza ainda exerce – mesmo quando é uma frágil promessa de tranqüilidade. Em paralelo aos condomínios de luxo, há os que são versões melhoradas de conjuntos habitacionais populares, com casas iguais e parede a parede com o vizinho. Um espirro incomoda. Nem sempre a privacidade é possível. Paciência. "Tudo em nome da segurança", lamenta a geógrafa Olga, com o dedo na ferida.