Familiares de pacientes que realizaram o procedimento de nebulização de hidroxicloroquina e vieram a óbito após dias internados por complicações da Covid-19 no Hospital Nossa Senhora Aparecida (HNSA), em Camaquã (RS), afirmaram à reportagem que não relacionam os óbitos ao procedimento, realizado pela médica Eliane Scherer. Familiares de dois dos três pacientes que faleceram na semana passada acreditam que houve erros por parte do hospital durante o período em que os pacientes estivam internados e relatam que ainda não tiveram acesso ao prontuário médico com a comprovação da arritmia cardíaca.
Até o momento, a direção do HNSA não descarta que as mortes tenham relação com a nebulização de hidroxicloroquina (que consiste em inalação de cápsulas de hidroxicloroquina diluídas em soro fisiológico), procedimento experimental que ainda não foi alvo de investigação científica. Segundo o hospital, três pacientes que realizaram o procedimento teriam apresentado reações adversas após o procedimento, como taquicardia ou arritmias e vieram a óbito entre os dias 22 e 24 de março.
Entenda o caso
Apesar de não haver comprovação de que a melhora esteja relacionada ao procedimento, a médica Eliane Scherer relata que seis pacientes que fizeram o tratamento com ela à base de hidroxicloroquina no hospital de Camaquã tiveram alta hospitalar. “Ao mesmo tempo em que eu fazia a nebulização, eu olhava para o oxímetro e eu via a minha oxigenação melhorando: 87%, 88, 89, 90, 91… Chegou a 97% de saturação. E eu me senti bem a partir dali. Terminada a nebulização, oito minutos depois de iniciada, a médica me coloca de volta no oxigênio com cinco litros por hora, e eu passo a me sentir bem”, disse Dalvi Soares de Freitas, um dos pacientes que teve alta, à Gazeta do Povo.
Houve, no entanto, sérias discordâncias durante a realização do procedimento. Enfermeiros que acompanhavam a médica se recusaram a acompanhá-la durante a nebulização em Freitas e alegaram que o procedimento não constava no protocolo do hospital – o uso da hidroxicloroquina é permitido, mas não por inalação. Como resultado do conflito, a médica, que trabalhava em uma empresa que presta serviço terceirizado para o pronto-socorro do HNSA, foi desligada do hospital no dia 10 de março.
No entanto, após ter alta hospitalar, Freitas – que é vereador e ex-prefeito de Dom Feliciano, município próximo a Camaquã – passou a dar entrevistas a veículos de comunicação sobre sua melhora, o que gerou repercussão que extrapolou os limites da pequena cidade de 70 mil habitantes. Ao saber do caso, o presidente Jair Bolsonaro entrou ao vivo em uma rádio do município e defendeu o tratamento por meio da nebulização de hidroxicloroquina. Como resultado, a questão se tornou ainda mais sensível dentro do hospital.
“O que acontece é que está havendo uma ideologização com relação aos tratamentos da Covid, e este tratamento lamentavelmente está dentro de um contexto, de uma dicotomia ideológica que acaba prejudicando muito mais os pacientes do que propriamente os médicos”, avalia Flávio Barros de Lia Pires, advogado da médica.
Já o hospital, em nota, declarou que “esse tipo de terapia (nebulização com cloroquina) aplicada pela Dra. Eliane Scherer transcende o que chamamos de prescrição off label. A instituição não tem experiência com este tratamento experimental, já que não há referências seguras para a aplicação do mesmo, portanto, opta por não fazê-lo”.
Versões de hospital e de famílias se contrapõem
Segundo o advogado da médica, até agora oito pacientes que haviam sido internados por complicações da Covid-19 foram tratados com nebulização de hidroxicloroquina pela dra. Eliane Scherer no HNSA. Desses, seis tiveram alta hospitalar e dois foram a óbito. Em um dos três pacientes que faleceu na semana passada, o procedimento foi aplicado por um médico do hospital após autorização judicial.
De acordo com Hospital Nossa Senhora Aparecida, não é possível atribuir melhora ou piora relacionada diretamente ao procedimento. “Por se tratar de um tratamento sem comprovação cientifica, o Hospital não pode afirmar que houve relação direta entre os óbitos e a inalação com HCQ, por sua vez, não verifica que a nebulização contribuiu para melhorar o desfecho dos pacientes”, afirmou o hospital em nota publicada no dia 24 de março.
O HNSA cita, ainda, que os três pacientes que foram a óbito teriam apresentado reações adversas após o procedimento, como taquicardia ou arritmias. Segundo o hospital, dos três pacientes que morreram na semana passada, dois deles estavam em grave estado geral, com insuficiência respiratória em ventilação mecânica, e um deles estava estável, recebendo oxigênio por máscara.
Entretanto, familiares de Tovar Amaro da Silva Barbosa, que tinha 44 anos e faleceu no dia 24 de março, questionam a versão dada pelo hospital. Segundo relato de Talita Amaro da Silva Barbosa, irmã de Barbosa, o paciente foi internado no HNSA em 17 de março após um exame detectar que 50% da capacidade pulmonar estava comprometida. No dia 19 pela manhã, ele teve piora durante a madrugada e precisou ser entubado. No mesmo dia, a família teve conhecimento do procedimento de nebulização de hidroxicloroquina e contratou Eliane Scherer para realizar o procedimento – de acordo com Talita, a médica esclareceu que a nebulização poderia não surtir efeito devido ao estado avançado que o paciente estava. Na noite de sexta-feira (19), foi realizado o procedimento e, segundo a família, houve melhora na saturação de oxigênio.
Na manhã do dia seguinte, o médico plantonista contatou a família informando que não seria autorizada a realização do procedimento novamente porque o paciente havia tido arritmia cardíaca durante a madrugada. “Então fomos a Camaquã [a família reside no município de Tapes (RS), a 50 quilômetros de Camaquã] para solicitar ao hospital o prontuário médico para ver se realmente houve a arritmia porque a doutora Eliane pediu o laudo do exame, mas o médico não quis passar”, conta Talita. Segundo ela, o hospital informou que só entregaria o prontuário a filhos ou pais do paciente. Ela cita, no entanto, que o HNSA também teria se negado a mostrar o prontuário à filha de outra paciente que teria apresentado o mesmo problema.
Vorni Gomes de Farias Junior, cunhado de Barbosa, conta que, ainda no sábado (20), a dra. Eliane disse à família que o paciente estava sem alimentação desde 16 de março, data da internação, e que precisava estar sendo alimentado por uma sonda nasogástrica. “Ela solicitou à equipe que colocasse a sonda porque isso poderia estar prejudicando a saúde dele, já que não estava sendo alimentado e estava tomando altas dosagens de remédios”, diz Farias Junior. Ele afirma que a sonda nasogástrica foi colocada apenas no sábado, conforme um médico informou à família.
No sábado (20), a família foi à justiça pedir autorização para que a inalação fosse realizada mais vezes, porém, na noite do mesmo dia, uma vaga foi liberada e Barbosa foi direcionado à UTI. Na UTI não seria mais possível fazer o procedimento, uma vez que há liberação de partículas no ar devido à inalação, o que pode colocar em risco demais pessoas que estão no mesmo ambiente.
Na noite de terça-feira (23), o médico plantonista informou à família que no dia anterior o paciente havia começado a fazer hemodiálise porque os rins começavam a apresentar problemas e que os batimentos cardíacos estavam fracos. Poucas horas depois, em novo contato, o hospital informou à família que Barbosa havia falecido.
A família avalia que não há comprovação de que o paciente morreu por causa da aplicação e entende que houve melhora a partir da inalação. Os familiares, que até o fechamento desta reportagem ainda não tinham obtido laudo que ateste a arritmia cardíaca, consideram levar o caso à justiça.
“Não queremos de forma alguma inviabilizar o hospital que atende milhares de pessoas e salva vidas. Mas ainda estamos vendo toda a situação, analisando tudo para tomar uma decisão do poderá ou não ser feito”, diz Farias Junior.
Já a filha de outra paciente - que fez a inalação e que também veio a óbito - afirmou à reportagem que vai processar o hospital devido à falta de informações sobre sua mãe. Mesmo tendo parentesco direto com a paciente, ela não teve acesso ao prontuário com o laudo do exame que teria indicado arritmia cardíaca. Na avaliação dela, o hospital pode ter cometido erros no tratamento da paciente.
Sua mãe foi internada na quarta-feira (17) e, desde então, apresentava piora contínua até que foi entubada dois dias depois. Desde o dia 19, a família pedia ao hospital que autorizasse a realização da nebulização, o que só foi permitido após determinação judicial na noite de domingo (21), quando a paciente já se encontrava em estado bastante agravado. O procedimento não foi feito pela dra. Eliane, e sim por um médico plantonista. No dia seguinte, o hospital contatou a família e relatou que a paciente havia apresentado arritmia cardíaca após a inalação e que a equipe estava em dúvida se o caso estava relacionado à nebulização de hidroxicloroquina.
Na segunda-feira (22) à noite, a paciente veio a óbito. “Não tenho o que criticar ou questionar a dra. Eliane. Se a arritmia tem vínculo com o método, não sei. Mas era evidente que ela já passava por agravamento diário antes da aplicação”. “Tive que ir à polícia duas vezes registrar boletim de ocorrência por dificuldade de acesso a justificativas hospitalares relacionadas ao tratamento dela. É ruim para qualquer família que está passando por esse tipo de situação. Estou buscando a justiça, para que outras famílias não passem por isso”, declara.
Hospital denunciou médica ao Ministério Público
O Hospital Nossa Senhora Aparecida encaminhou uma denúncia ao Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS) relatando infrações éticas que teriam sido cometidas pela médica. A denúncia também foi enviada ao Conselho Regional de Medicina (Cremers), que apura o caso.
O advogado da médica cita que ela recebeu um pedido do Ministério Público, para que fornecesse explicações por escrito, porém as alegações presentes na denúncia estariam relacionados a questões administrativas quanto a desentendimentos entre a médica e colegas e diretores do hospital, e não à nebulização de hidroxicloroquina ou aos óbitos dos pacientes. Ele diz que a médica não teve acesso ao inquérito policial nem ao prontuário dos pacientes.
“Não nos foi passado laudo que comprovasse a arritmia, na documentação do MP não consta nada. Até o momento, o que temos é que se tratam de pessoas que faleceram em decorrência da Covid, que já estavam em estado grave”, afirma Flávio Pires.
“Alguns veículos de imprensa têm vinculado a morte dos pacientes à nebulização. O hospital realmente tem dito que não tem como relacionar o tratamento às mortes, mas nas palavras do diretor do hospital, ele deixa as entrelinhas que teria uma relação. Porém, não vi nenhum médico fazer essa afirmação. Pode ser que exista alguma coisa dentro do inquérito que eu não tive conhecimento, mas na documentação que recebemos do MP não há nada. A probabilidade dessas mortes terem ocorrido em razão da medicação é praticamente nula”, afirma.
A reportagem contatou o Hospital Nossa Senhora Aparecida e apresentou as alegações narradas pelos familiares à reportagem. A assessoria de imprensa, entretanto, informou que o hospital não se manifestaria sobre o caso.
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