Um na cadeia
O fazendeiro maranhense Gilberto Andrade foi condenado a 14 anos de prisão em 2008, por trabalho escravo. Mas o rigor da pena deve-se a outros crimes associados. Ele foi considerado culpado por tortura e ocultação de cadáver, já que ossadas de trabalhadores foram encontradas na fazenda dele.
O que diz a lei
Art. 149 do Código Penal Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Domínio do fato
Julgamento do mensalão ajudará a combater regime análogo à escravidão
Agência Estado
Assim que for consolidado o julgamento do mensalão no Supremo Tribunal Federal (STF), o Ministério Público do Trabalho (MPT) vai se valer da teoria do domínio do fato para buscar a responsabilização judicial de empresas que usam o trabalho escravo. Na mira estão empresas que comandam a cadeia produtiva, mas terceirizam a produção para se dissociar da responsabilidade da contratação de funcionários que trabalham em condições análogas à escravidão. Entre os setores investigados pelos procuradores estão construção civil, frigoríficos, sucroalcooleiro, fazendas e vestuário.
A súmula 331 do TST, de 2011, proíbe a terceirização da atividade-fim das empresas. Muitas dizem não ter conhecimento das condições a que seus fornecedores submetiam os funcionários e sustentam que não podem ser responsabilizadas. Significa dizer que uma fábrica de sorvete pode terceirizar atividades-meio, como o serviço de limpeza, mas não a produção do sorvete. Contudo, há questionamentos sobre ela no STF, que ainda não pacificou entendimento sobre o assunto.
Coordenador nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo do MPT, o procurador Jonas Ratier Moreno refuta a tese das empresas. Ele é um dos entusiastas do uso da teoria do domínio do fato. "Será mais um material para a gente alegar. Esse julgamento (do mensalão) vem consolidar muitas posições, e principalmente essa de que a empresa, quando contrata alguém para produzir esse produto e coloca para vender, precisa saber que tem responsabilidade objetiva por esse produto."
317 processos de trabalho escravo tramitam nos tribunais federais do Brasil, sendo 104 no TRF4, que abrange as ocorrências do Paraná, conforme dados do Conselho Nacional de Justiça. Casos do início dos anos 2000 estão sendo finalmente julgados.
Manter pessoas em situação semelhante à escravidão é crime, com pena de dois a oito anos de reclusão, mas, apesar dos milhares de casos descobertos na última década, ninguém está preso por trabalho escravo no Brasil. São poucas as decisões judiciais definitivas com trânsito em julgado, como se diz no meio jurídico e mesmo essas sentenças costumam ser brandas, com condenações como pagamento de cestas básicas ou prestação de serviços à comunidade.
INFOGRÁFICO: Veja a evolução no resgate de trabalhadores
Especialistas entrevistados pela Gazeta do Povo são unânimes ao dizer que a sensação de impunidade reina. Um dos motivos da escassez de sentenças judiciais criminais é o embate que aconteceu no Judiciário, por muitos anos, para definir quem deveria analisar os casos criminais: a Justiça estadual ou a federal. Em 2006, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que a competência era da Justiça Federal, mas a decisão só foi publicada dois anos depois, servindo como indicação de que os casos de crime de trabalho escravo deveriam ser remetidos às varas federais.
A situação acabou criando um represamento de ações, que passaram a ser julgadas, várias delas em primeira instância, somente a partir de 2009. Com a demora, vários casos acabaram prescrevendo (ou seja, passaram do tempo máximo para que fossem julgados e punidos).
Na semana passada, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) divulgou o retrato do andamento das ações judiciais de trabalho escravo. São 317 processos em tramitação nos tribunais federais do Brasil, sendo 104 no TRF4, que abrange as ocorrências do Paraná. Casos do início dos anos 2000 estão sendo finalmente julgados. Nos últimos dois anos, uma série de decisões judiciais veio à tona.
Por meio de 1,3 mil operações, de 1995 até o ano passado 44 mil pessoas foram localizadas em situação análoga à escravidão no Brasil. Os números de 2012 indicam que o Paraná foi o quarto estado no Brasil com mais casos de trabalho semelhante à escravidão. As operações de combate localizaram 256 pessoas em condições precárias. No estado, os casos se concentram nos setores de reflorestamento, ervateiro e sucroalcooleiro (cana-de-açúcar).
Apesar do zero estatístico nas penitenciárias, o resultado prático no combate ao trabalho escravo, via de regra, inclui a libertação dos trabalhadores, o pagamento de indenizações e a divulgação do caso. A criação de uma lista suja, com restrições de financiamento para empresas e fazendeiros, também gerou impacto. Outra iniciativa recente foi tomada no mês passado, quando uma lei paulista determinou a cassação do registro de empresas condenadas em segunda instância judicial.
Falta de provas livra explorador da condenação
Nem todos os casos descobertos de trabalho análogo à escravidão acabam virando processos criminais. E, mesmo que o relato vá parar na mesa de um juiz, muitas condicionantes pesam para fazer o processo se arrastar ou não se transformar em condenação. Conseguir provar a restrição da vontade dos trabalhadores é uma das dificuldades. Aldacy Rachid Coutinho, professora de Direito do Trabalho na Universidade Federal do Paraná, destaca que só a análise de todas as ações poderia resultar numa avaliação precisa, mas ressalta que a apresentação de provas, e não apenas de indícios, é um dos entraves.
"Precisamos enfrentar esse problema, com uma atuação mais efetiva na esfera criminal", defende Luís Antônio Camargo de Melo, procurador-geral do Ministério Público do Trabalho. Ele alega que são crimes que ofendem os direitos humanos, contra a sociedade. Rinaldo Barros, juiz em Goiás e integrante do grupo de enfrentamento ao tráfico de pessoas do Conselho Nacional de Justiça, diz que "um problema para o enfrentamento é a inexistência de estatísticas confiáveis, com cada órgão envolvido no combate ao trabalho escravo registrando isoladamente os dados". Ele cita que em Portugal está o melhor banco de dados sobre trabalho escravo. "No Brasil, o problema é que a pena é pequena e o julgamento demora", diz.
Um pouco do foco se perde no caminho, na visão de Gláucio Araújo de Oliveira, procurador do Ministério Público do Trabalho no Paraná (MPT-PR). "Há uma divisão equivocada de atribuições. Eu faço a operação. Vou à fazenda e recolho provas que rendem uma série de processos, como os administrativos. Mas na hora do processo criminal, o caso vai para um procurador federal", comenta. Ele, que já atua no combate ao trabalho escravo há dez anos, salienta que os casos mais comuns envolvem condições degradantes, jornadas exaustivas e a dependência por dívidas. "A morosidade na Justiça gera a sensação impunidade e o esquecimento.".
Isolamento
Operação localiza uma fazenda de escravos a 200 km de Curitiba
Trabalhadores em condições muito precárias foram localizados em uma fazenda de erva-mate de Inácio Martins, no Sul do Paraná, a aproximadamente 200 quilômetros de Curitiba, no dia 25 de fevereiro. A operação do Ministério Público do Trabalho (MPT), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e da Polícia Federal (PF) também encontrou familiares dos trabalhadores 33 pessoas ao todo.
Na fazenda, de difícil acesso, não havia oferta de água tratada nem condições sanitárias. Para as necessidades fisiológicas só havia a mata. Ir do alojamento ao local de trabalho demandava uma hora de caminhada. Os trabalhadores não eram impedidos de ir embora, mas a distância e a falta de alternativas de transporte isolaram o grupo. Muitos não sabiam dizer quanto ganhavam. Eles tinham de pagar pelas ferramentas e pela alimentação. Um adolescente trabalhou por dois meses e ainda estava devendo a quem o contratou.
Para a empresa dona da área, sobrou a conta de R$ 48 mil em verbas rescisórias, R$ 20 mil por dano moral coletivo e R$ 1,5 mil a cada trabalhador, por dano moral individual. Dois adolescentes receberam o último valor em dobro, por realizarem atividade inadequada para a idade. Os proprietários da fazenda alegaram desconhecer o regime de trabalho, que seria responsabilidade de pessoas que arrendaram a área. A investigação, que pode levar a processos judiciais, está em andamento.
Colaborou Cléber Moletta
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