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Há quase 20 anos, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que a propagação de ideias nazistas é crime imprescritível de racismo e não está protegida, no Brasil, pela liberdade de expressão. Num julgamento histórico encerrado em setembro de 2003, por 8 votos a 3, os ministros negaram um habeas corpus a Siegfried Ellwanger, um escritor e editor brasileiro que publicara livros que negavam o holocausto e expressavam desprezo pelos judeus.
A discussão sobre o tema ressurgiu com força nesta semana, quando Bruno Aiub, o Monark, defendeu, no podcast Flow, a possibilidade de existir no Brasil um partido nazista, enquanto o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) disse achar um erro a criminalização do nazismo na Alemanha. O "caso Ellwanger", no entanto, é diferente do episódio atual, uma vez que o escritor defendeu, abertamente, ideias tipicamente nazistas, e não a possibilidade, discutida no Flow, de ideias nazistas serem divulgadas legalmente na arena pública.
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“Escrever, editar, divulgar e comerciar livros ‘fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias’ contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade”, decidiu o STF na ocasião.
Ellwanger foi acusado de racismo em 1991 e condenado em 1996 a dois anos de prisão pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Ele recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), e depois ao STF, pedindo a extinção de sua punibilidade, por considerar que, apesar do conteúdo discriminatório, seus livros não eram racistas, sob o argumento de que judeus não são uma “raça”.
A Constituição diz que o crime de racismo é imprescritível, o que significa que a passagem do tempo não extingue a possibilidade de o Estado processar e punir quem o cometeu. Na prática, valendo-se da prescrição, Ellwanger queria se livrar da pena imposta na condenação.
O julgamento no STF sobre o "caso Ellwanger", como ficou conhecido, começou no fim de 2002, quando o então ministro Moreira Alves, relator do caso, votou favoravelmente a ele, acolhendo a tese da defesa, de que judeus não seriam uma raça. Partiu do entendimento de que o conceito de raça, historicamente, referia-se a uma classificação física, que diferenciava brancos, negros, amarelos e vermelhos.
Para Moreira Alves, a intenção do constituinte de 1988 era que fosse imprescritível o crime de racismo praticado contra negros, em razão do passado escravocrata do Brasil e de suas consequências que perduraram após a abolição em 1888. A imprescritibilidade, regra excepcional do Direito Processual Penal, faria sentido na Alemanha, em casos de discriminação contra judeus, mas não no Brasil, onde a atrocidade nazista contra eles nunca ocorreu.
O voto vencedor, no entanto, foi do então ministro Maurício Corrêa, segundo o qual o conceito de racismo inscrito na Constituição brasileira poderia sim ser aplicado à discriminação e ao desprezo contra os judeus – e não porque eles formariam uma raça, no sentido genético do termo, mas sim em razão de um processo social de inferiorização e segregação que sofreram como povo ao longo da história, sobretudo no regime nazista.
“Dúvida não pode haver de que o antissemitismo dogmatizado pelos nazistas constitui uma forma de racismo, exatamente porque se opõe a determinada raça, essa tida sob a visão de uma realidade social e política, tendente a hierarquizar valores entre certos grupos humanos. Pregar a restauração dessa doutrina, ainda que por vezes sob disfarce de ‘revisionismo’, como pretendeu o paciente em seus atos, é praticar racismo”, disse o ministro em seu voto.
A lei que tipificou o crime de racismo, aprovada em 1989, e pela qual Ellwanger foi condenado, o define como o ato de “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
Acompanharam o voto de Corrêa os ministros Celso de Mello, Nelson Jobim, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Sepúlveda Pertence, Carlos Velloso, todos já aposentados, e Gilmar Mendes, ainda em exercício.
Os votos vencidos foram dos ministros Moreira Alves, Marco Aurélio Mello e Carlos Ayres Britto, também aposentados. O primeiro concedia o habeas corpus, extinguindo a punição, por considerar que não havia racismo, somente discriminação, crime que teria então prescrito. Os dois últimos absolviam Ellwanger, com base na defesa da liberdade de expressão.
Por que, para o STF, manifestações nazistas não estão protegidas pela liberdade de expressão
Em seu voto, o ministro Maurício Corrêa, que inaugurou a divergência e obteve a adesão da maioria, foi o primeiro a defender a interpretação constitucional de que manifestações racistas não estão contempladas pela liberdade de expressão. Para ele, prevalecem sobre ela os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
Corrêa sustentou que as liberdades de expressão e pensamento “não são incondicionais, razão pela qual devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites traçados pela própria Constituição”.
“Atos discriminatórios de qualquer natureza ficaram expressamente vedados, com alentado relevo para a questão racial”, afirmou. “A previsão de liberdade de expressão não assegura o direito à incitação ao racismo, até porque um direito individual não pode servir de salvaguarda para práticas ilícitas, tal como ocorre, por exemplo, com os delitos contra a honra.”
Esse entendimento foi expresso na ementa do julgamento, que consolida as teses aprovadas pela maioria dos ministros. “Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como absoluta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal”, diz a decisão.
Após o voto de Maurício Corrêa, o ministro Sepúlveda Pertence, embora o tenha acompanhado, manifestou preocupação em relação à ideia de punir alguém em razão da publicação de livros. Lembrou que, após a instauração do regime militar no Brasil, em 1964, pensadores e militantes de esquerda foram perseguidos por guardarem obras marxistas.
“Creio que a beleza e a seriedade da discussão sobre o conceito de racismo estão deixando um pouco na sobra uma outra discussão relevante: o livro como instrumento de um crime, cujo verbo principal é ‘incitar’. Fico muito preocupado com certas denúncias do pós-64 neste país, da condenação de Caio Prado porque escreveu e da condenação de outros porque tinham em suas residências livros de pregação marxista”, disse Pertence.
Meses depois, ao falar novamente no julgamento, Pertence disse que, em geral, livros não incitam ou induzem ao ódio racial, mas que, no caso das obras de Ellwanger, eles efetivamente praticavam o racismo, ato também punido pela lei. “Instrumento de incitação ou induzimento, salvo casos excepcionalíssimos, não concebo que livro possa sê-lo. Mas a discussão convenceu-me de que um livro, pode sim, ser instrumento de prática do racismo”, disse, referindo-se a um livro do escritor.
O que disseram ministros contrários à punição de Ellwanger
No julgamento, os ministros Carlos Ayres Britto e Marco Aurélio Mello levantaram objeções à condenação de Ellwanger, em razão da liberdade de expressão. O primeiro disse que “não é crime tecer uma ideologia” e que, ao ler livros de Ellwanger, não viu racismo ou preconceito.
“Pode ser uma pena, uma lástima, uma desgraça que alguém se deixe enganar pelo ouropel de certas ideologias, por corresponderem a um tipo de emoção política ou de filosofia de Estado que enevoa os horizontes do livre pensar. Mas o fato é que essa modalidade de convicção e consequente militância tem a respaldá-la a própria Constituição Federal. Seja porque ela faz do pluralismo político um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (inciso V do art. 1º), seja porque impede a privação de direitos por motivo, justamente, de convicção política ou filosófica (inciso VIII do art. 5º)”, afirmou Ayres Britto.
Ele afirmou ser possível praticar crime de racismo contra judeus, mas que, em sua visão, Ellwanger não defendia o antissemitismo em si, mas criticava o sionismo internacional, que seria um plano de judeus ricos de conquistar o mundo por meio do capital financeiro e do controle da imprensa.
“Chega até mesmo a revelar simpatia por Adolf Hitler, mas sem jamais falar de arianismo. Nem de superioridade racial alemã, ou de inferioridade racial judaica”, comentou Ayres Britto, acrescentando que o autor não justificava ou apoiava o extermínio de judeus, mas defendia que quem havia sofrido “sistemático processo de dizimação” teria sido o povo da Alemanha.
Marco Aurélio, por sua vez, admitia a condenação de Ellwanger por discriminação, mas não por racismo, votando, portanto, pela extinção da punibilidade com a prescrição. No voto, fez ampla defesa da liberdade de expressão. Criticou a censura, observando que, na condenação de Ellwanger, o TJ-RJ determinara a destruição de seus livros.
“Os piores acontecimentos havidos – entre eles, a perseguição aos judeus – sempre ocorreram em momento de treva no campo das comunicações, de falta de publicidade de modo a permitir o acompanhamento público. Encobertos, ganharam proporções alarmantes, predominando a barbárie. A história mostra que a transparência, a revelação dos fatos serve de freio aos homens, evitando a prevalência de paixões condenáveis, de atos que contrariam a natureza em sua expressão maior”, afirmou Marco Aurélio Mello no voto.
Para ele, o direito à livre expressão não é apenas uma “proteção cega e desproporcional da autonomia de ideias de um indivíduo”, mas uma garantia para concretizar o princípio democrático, por promover o “debate público de temas controversos e a viabilidade de transformações sociais e políticas de forma pacífica”.
O ministro concordou que ela não é um direito absoluto, mas só poderia ser restringida em caso de manifestações com incitação à violência, o que, para ele, não ficou demonstrado nas publicações de Ellwanger.
“Não identifiquei qualquer manifestação de induzir o preconceito odioso no leitor. Por óbvio, a obra defende uma ideia que causaria repúdio imediato a muitos, e poderia até dizer que encontraria alguns seguidores, mas a defesa de uma ideologia não é crime e, por isso, não pode ser apenada. O fato de alguém escrever um livro e outros concordarem com as ideias ali expostas não quer dizer que isso irá causar uma revolução nacional”, afirmou.
Na interpretação dele, o livro expunha a versão “deturpada, incorreta e ideológica”. “Não concordo com o que o paciente escreveu, mas defendo o direito que ele tem de divulgar o que pensa. Não é a condenação do paciente por esta Corte – considerado o crime de racismo – a forma ideal de combate aos disparates do seu pensamento, tendo em vista que o Estado torna-se mais democrático quando não expõe esse tipo de trabalho a uma censura oficial, mas, ao contrário, deixa a cargo da sociedade fazer tal censura, formando as próprias conclusões.”
O que disseram ministros que não admitiam a defesa do nazismo
Ayres Britto e Marco Aurélio, no entanto, acabaram vencidos nesse ponto. Em resposta a eles, Celso de Mello pediu para complementar seu voto. Condenou qualquer forma de censura prévia e defendeu a exteriorização de ideias políticas, ainda que contrárias ao pensamento dominante. Por outro lado, afirmou que há abuso na liberdade de expressão quando veiculam-se manifestações criminosas, o que permite uma reação estatal “a posteriori”.
“O abuso no exercício da liberdade de expressão não pode ser tolerado. Ao contrário, deve ser reprimido e neutralizado. É por tal razão que enfatizei que a incitação ao ódio público contra o povo hebreu não está protegida pela cláusula constitucional que assegura a liberdade de expressão”, disse.
Os livros de Ellwanger, na avaliação do ministro, continham expressões de “ódio racial, veiculadas com evidente superação dos limites da crítica política ou da opinião histórica”.
“Publicações que extravasam, abusiva e criminosamente, os limites da indagação científica e da pesquisa histórica, degradando-a ao nível primário do insulto, da ofensa e, sobretudo, do estímulo à intolerância e ao ódio público contra os judeus (como se registra no caso ora em exame), não merecem a dignidade da proteção constitucional que assegura a liberdade de manifestação do pensamento, pois o direito à livre expressão não pode compreender, em seu âmbito de tutela, exteriorizações revestidas de ilicitude penal”, completou Celso de Mello.
Carlos Velloso disse que as obras não expressavam apenas uma ideologia, o que seria permitido, mas pregavam o preconceito e estimulavam o ódio contra os judeus – conduta que constitui crime e, portanto, não está abarcada pela liberdade de expressão. Nelson Jobim disse que “a destinação dos livros era disseminar o antissemitismo e o racismo” e que Ellwanger queria “matar judeu”.
Gilmar Mendes, por sua vez, citando renomados juristas estrangeiros, chegou à conclusão de que “a discriminação racial levada a efeito pelo exercício da liberdade de expressão compromete um dos pilares do sistema democrático, a própria ideia de igualdade”.
Citou ainda estudos demonstrando que, poucos anos antes do julgamento, o ressurgimento do antissemitismo na Europa passou a ser rechaçado por vários países do continente. O governo austríaco foi alvo de boicote por permitir um partido nacionalista anti-imigração que exaltava políticas econômicas de Hitler. Na Alemanha, o governo pediu ao tribunal constitucional o banimento de outro partido acusado de preparar jovens para ataques a estrangeiros e judeus.
Bélgica, França, Alemanha, Espanha e Suíça, na época, já haviam aprovado leis, mantidas pelas cortes constitucionais e de direitos humanos, que criminalizavam a banalização, a negação ou a justificação do holocausto, manifestações consideradas ofensivas.
No Brasil, disse o ministro, prevalece sobre a liberdade de expressão, no caso de manifestações antissemitas, os princípios da dignidade da pessoa humana, do pluralismo político, de repúdio ao terrorismo e a norma que torna o racismo imprescritível.
“Uma compreensão dos direitos fundamentais que não se assente apenas em uma concepção liberal certamente não pode dar guarida, no âmbito do direito à liberdade de expressão, a manifestações antissemitas tão intensas como as que ressaem dos autos”, disse.
No último dia 8, no auge da polêmica envolvendo Monark, Gilmar Mendes foi taxativo, porém sem citar o apresentador: “Qualquer apologia ao nazismo é criminosa, execrável e obscena. O discurso do ódio contraria os valores fundantes da democracia constitucional brasileira. Minha solidariedade à comunidade judaica”, postou no Twitter. Alexandre de Moraes também se pronunciou: “A Constituição consagra o binômio: liberdade e responsabilidade. O direito fundamental à liberdade de expressão não autoriza a abominável e criminosa apologia ao nazismo”.
O atual caso poder chegar ao STF, uma vez que a Procuradoria-Geral da República (PGR) abriu procedimento para analisar as declarações de Kim Kataguiri – que, como parlamentar, tem foro privilegiado na Corte – contra a criminalização do discurso nazista.