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Em algumas áreas o governo Lula teve um começo lento. Não é o caso do fomento à cultura: no primeiro mês do ano, e apenas com a Lei Rouanet, a nova gestão deu andamento a 597 projetos de captação de recursos que, juntos, totalizam R$ 610 milhões.
A aprovação dos projetos não significa que os recursos estão garantidos. A lei prevê que os responsáveis pelas propostas agora busquem captar os recursos junto ao setor privado por meio de doações ou patrocínios, e que as empresas que contribuírem recebam abatimentos no Imposto de Renda. Ou seja: o dinheiro não sai diretamente dos cofres públicos, mas, com a renúncia fiscal, esses valores deixam de entrar neles.
Até agora, o maior valor aprovado para captação de recursos pela Lei Rouanet neste ano foi o da reforma do palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, que corresponde a R$ 37,1 milhões. O menor valor (R$22,4 mil) tem a ver com a publicação de um livro sobre lendas do Rio Grande do Sul, com tiragem de mil exemplares. O valor médio dos projetos aprovados em 2023 foi de pouco mais de R$ 1 milhão.
As medidas de homologação de novos projetos foram anunciadas pelo Ministério da Cultura em quatro portarias publicadas no Diário Oficial da União entre 18 e 23 de janeiro. Na primeira delas, aproximadamente 457 propostas foram homologadas. O primeiro item da lista tem o título de “Danças da Diáspora africana legados e tradições e Danças de orixá”. A iniciativa, cujo valor é de R$ 582 mil, é descrita como “um espetáculo de dança da diáspora afro-brasileira com rodas de conversas no intuito de oportunizar um espaço capaz de possibilitar fricções e construções de ideias no campo das artes/dança da diáspora africana.”
Nesta leva também foram incluídos um espetáculo produzido e encenado pela atriz Cláudia Raia, no valor de R$ 5 milhões – para apresentar “duas emocionantes histórias selecionadas com base em importante pesquisa” – e o financiamento da Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte (R$ 6,4 milhões). O valor total aprovado nessa portaria foi de R$ 441, 6 milhões.
No dia 19, a pasta homologou mais 14 projetos (total de R$ 11, 8 milhões). No dia seguinte, outros 93 projetos receberam o carimbo do Ministério da Cultura, acrescentando R$ 80,6 milhões. Neste grupo estão projetos como “Disney on Ice” (R$ 3,5 milhões) e Disney Magia e Sinfonia (R$ 4,8 milhões). Por fim, em 23 de janeiro, a pasta aprovou a captação de 33 projetos, que somam R$75, 8 milhões.
De forma geral, a distribuição dos recursos não parece seguir um padrão específico: a lista de projetos contemplados inclui artistas gospel, circos, eventos de cultura regional e alguns projetos de apelo comercial. Como a adesão à Lei Rouanet envolve uma preparação relativamente complexa, é provável que todos os projetos homologados no governo Lula até aqui tenham sido apresentados ainda na gestão de Jair Bolsonaro. Por isso, será preciso tempo até que as prioridades do novo governo no fomento da cultura se tornem mais claras.
Prorrogações
Além de aprovar novos projetos por meio da Lei Rouanet, a nova gestão ampliou o prazo de captação de recursos para milhares de projetos que já haviam sido autorizados a buscar as verbas anteriormente.
No dia 17 de janeiro, saiu a primeira portaria tratando do assunto. De uma vez, 5.186 projetos tiveram prorrogado o prazo para a captação dos recursos. A lista inclui escolas de samba como a Mancha Verde, ligada a uma torcida do Palmeiras, e a Vai Vai. Outros projetos que obtiveram extensão de prazo são o da obra do anexo do Museu do Ipiranga, em São Paulo, e o projeto “As Aventuras de Luccas Neto”, que tem como estrela o youtuber irmão do (também youtuber) Felipe Neto. Nesses casos, os valores não foram citados.
Ainda neste ano, o Ministério da Cultura homologou pequenas mudanças de valor em alguns projetos que já haviam sido aprovados. A lista inclui a restauração do Cristo Redentor (R$ 9 milhões) e o festival de humor Risorama (R$5, 2 milhões), organizado pelo humorista Diogo Portugal.
Oportunidade perdida
Para o cineasta Josias Teófilo, o início acelerado do governo Lula nesse quesito demonstra que a política de contenção de despesas adotada pelo governo Jair Bolsonaro na área da Cultura foi contraproducente. “O governo Bolsonaro errou. O que ele economizou agora vai ser usado no governo Lula. Foi uma burrice”, diz ele, para quem a posição política dos artistas beneficiados pelas leis de fomento não deve ser levada em conta por governo algum.
Na opinião do cineasta, o governo anterior perdeu uma oportunidade de deixar uma marca na cultura. “Aconteceu o bicentenário da Independência, e muitos filmes poderiam ter sido feitos sobre o tema. O presidente Bolsonaro poderia ter lançado um edital” exemplifica. Para Teófilo, a Lei Rouanet, de forma geral, é boa. "O financiamento da cultura tem que continuar independentemente do governo. No geral a lei é muito boa e funciona muito bem", diz.
Presidente da Biblioteca Nacional na reta final do governo Bolsonaro, Luiz Carlos Ramiro afirma que o enxugamento dos recursos destinados à cultura atendeu a um apelo popular. "Foi aplicada uma estratégia, especialmente a partir da gestão do secretário Mário Frias, de moralização das leis de incentivo”, afirma, em referência ao então Secretário de Cultura do governo federal. “E isso cumpria uma demanda eleitoral”, prossegue.
Ramiro diz que o fomento à cultura deve ser feito com base nas experiências bem-sucedidas.
"Uma política de fomento cultural conservadora precisaria recuperar um histórico dos principais momentos de fomento à cultura no Brasil”. Ele cita como exemplo o Instituto Nacional do Livro, que foi capaz de impulsionar obras culturais importantes e de levá-las aos rincões do país. A entidade foi criada em 1937 e hoje está incorporada à Biblioteca Nacional.
O ex-presidente da Biblioteca Nacional também concorda que o governo anterior perdeu a oportunidade de deixar seu marco no bicentenário da Independência. "Foi um dos maiores desperdícios que um governo já teve. Faltou uma coordenação mais calibrada para isso", diz. Na opinião de Ramiro, o corte de algumas despesas com a Cultura deveria ter sido acompanhado de uma agenda propositiva e de um reforço nas políticas estratégicas para esse setor.
Descrença compreensível, mas injustificável
O pianista Álvaro Siviero, um dos mais respeitados do país, acredita que a descrença de parte da população com a política de fomento da cultura é, de certa forma, compreensível. "Em grande parte toda a demonização da Lei Rouanet veio porque as pessoas perceberam que havia brechas para desvios de dinheiro", diz ele, que complementa: “Outro motivo de revolta é que algumas vezes as pessoas responsáveis pela aprovação do projeto veem como manifestação cultural aquilo que é embrutecimento do ser humano, pornografia, avacalhação.”
Ainda assim, afirma Siviero, a injeção de recursos públicos na cultura é essencial. “Investir em cultura não é despesa. É uma necessidade das pessoas. Se não houvesse a Lei Rouanet, a vida cultural do país estaria muito mais atrasada”, afirma. Na opinião do pianista, a falta de atenção devida à promoção da cultura é um erro. “Precisamente a falta de acesso à cultura é o que faz com que as pessoas confundam o belo com o gosto pessoal”, explica.
Como funciona a Lei Rouanet
Em vigor desde 1991, a Lei Rouanet (Lei 8.313/91) permite que produtores culturais e artistas busquem doações ou patrocínios no setor privado. Em contrapartida, há abatimento de impostos para aqueles que contribuirem. As empresas podem abater do Imposto de Renda 40% das doações e 30% dos patrocínios. Já as pessoas físicas – que, em tese, também podem contribuir – têm o direito de abater 80% das doações e 60% dos patrocínios.
Em fevereiro de 2022, o governo Bolsonaro editou uma Instrução Normativa que reduziu os limites para alguns projetos. As normas continuam em vigor. O limite de captação foi definido em R$ 6 milhões e, em alguns casos, menos. A exceção são os projetos de "tipicidade especial", a categoria na qual a reforma do Theatro Municipal do Rio de Janeiro foi colocada. Além disso, o prazo de captação caiu de três para dois anos. O cachê de artistas solo não pode ultrapassar os R$ 3.000 (antes, era de R$ 45.000).
A Gazeta do Povo procurou o Ministério da Cultura para questionar sobre eventuais projetos de mudança nos critérios da Lei Rouanet, mas ainda não recebeu resposta.