Desde o fim do regime militar, a Fundação Nacional do Índio (Funai) segue uma tradição, a de evitar nomeações de funcionários com histórico missionário. Também adota o hábito de evitar o contato com populações indígenas isoladas – o órgão considera que essa falta de interação é voluntária e representa uma decisão que deve ser respeitada.
O primeiro costume foi rompido na última quarta-feira, com a nomeação do ex-missionário evangélico Ricardo Lopes Dias para a coordenação da área de indígenas isolados. Os críticos da decisão enxergam nela o risco de que o segundo hábito seja rompido, e Lopes Dias dê início a uma nova era, de intervenção do Estado junto a povos que não têm contato com a civilização de influência europeia.
Lopes Dias já foi missionário, de fato. Como membro da organização Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB), entre 1997 e 2007 trabalhou na evangelização de tribos indígenas no Vale do Javari, no Amazonas – uma área de mais de 85 mil quilômetros quadrados, maior do que a Áustria, que abriga a maior parte das comunidades isoladas do país.
Mas ele é também antropólogo. Formado pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), tem mestrado em antropologia pela e Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutorado em ciências humanas e sociais pela Universidade Federal do ABC (UFABC). Cursou também pós-graduação em antropologia intercultural pela UniEvangélica, de Anápolis (GO).
A nomeação do arqueólogo só foi possível porque, no último dia 30 de janeiro, o presidente da Funai, Marcelo Xavier da Silva, alterou o regimento interno do órgão, que antes determinava que apenas servidores de carreira poderiam assumir cargos de chefia. Funcionários do órgão divulgaram uma carta aberta em que protestam contra a decisão. “As conquistas consolidadas por décadas na proteção aos índios isolados passam a estar ameaçadas, já que, na prática, quem vai executá-las são àqueles que já promoveram desgraças à vida e a sociedade de inúmeros povos indígenas na Amazônia”, diz o texto.
Cerco de ignorância
A Funai calcula que sejam pouco mais de cem os povos isolados ou de contato recente – nenhum outro país do mundo reúne tantas tribos nessa situação. O principal motivo alegado para evitar o contato é o risco de que os indígenas não tenham anticorpos para doenças trazidas involuntariamente pelos povos da chamada civilização. Mas, para o antropólogo Edward Mantoanelli Luz, consultor da Human Habitat Consultoria e especializado em demarcação de terras indígenas, esse temor não faz sentido.
“Não sabemos se os índios estão em estado de ‘isolamento voluntário’, como os defensores do isolamento costumam afirmar”, diz ele. “Ninguém tem a menor ideia do que pensam, como vivem esses índios que estão nessa situação. Atribuir a eles isolamento voluntário é muito provavelmente um eufemismo para grupos indígenas que vivem, isso sim, num cerco de ignorância”.
Existem maneiras de abordá-los sem causar doenças, afirma o especialista. “A tecnologia está disponível, podemos – e devemos – imunizar essas pessoas, sem colocar a vida delas em risco. Esses indígenas isolados provavelmente não sabem que a sociedade mantém profissionais dedicados a defendê-los, preparados para dar os primeiros medicamentos”. Além disso, diz o especialista, conhecido por questionar os critérios utilizados para demarcar terras indígenas em áreas que já são ocupadas por produtores agrícolas, é possível que, no contato eventual com caçadores e madeireiros, alguns desses grupos já tenham desenvolvido imunidade.
Mantoanelli foi professor de Ricardo Lopes Dias na pós-graduação. “Ele é extremamente capacitado, é um poliglota, consegue se comunicar com diferentes grupos do Vale do Javari. É um profissional de respeito, que concilia conhecimento teórico com trabalho de campo. Ele vai zelar pelos índios isolados”.
Discriminação
O departamento de Ricardo Lopes Dias é responsável pela manutenção de bases na Amazônia, todas instaladas próximas de registros de indígenas isolados ou recentemente contactados. “Eu serei apenas um coordenador e terei que implementar a política da direção do órgão. O que eu posso dizer é que não vou mudar o que vem dando certo. É claro que, se houver coisas que a gente deva mudar, vamos mudar”, afirmou ele em entrevista ao jornal O Globo. “Acho que está havendo até uma discriminação pelo fato de eu ser evangélico. Eu sou antropólogo, tenho mestrado e acabei de concluir um doutorado. Tenho conhecimento técnico sobre a situação dos índios no Brasil”.
O passado missionário causa polêmica, também, porque a organização de que Lopes Dias participou, a Missão Novas Tribos do Brasil, foi acusada, nos anos 1980, de contatar, sem permissão, indígenas isolados pertencentes ao povo zo'é, no Pará – o que teria provocado uma alta mortandade de malária entre os nativos, uma acusação que o grupo nega, alegando que aquelas comunidades já tinham contato com madeireiros e que foi o trabalho dos religiosos que impediu uma tragédia ainda maior.
A MNTB representa um dos maiores grupos evangélicos que atuam em missões no Brasil. Se, no início da colonização, no século 16, o esforço missionário foi dominado por instituições católicas, a partir do século 19 surgiram iniciativas pontuais partindo de missões evangélicas, oriundas principalmente dos Estados Unidos.
Da década de 1930 em diante, missionários passaram a contar com a boa vontade do governo brasileiro porque faziam registros dos idiomas nativos, que estavam se perdendo. Como integrante do Serviço de Proteção ao Índio, na década de 1950, o antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), contrário ao trabalho missionário, chegou a concordar que religiosos do Summer Institute of Linguistics (SIL) atuassem dentro de aldeias. O fato de os religiosos tentarem mudar aspectos das culturas locais era visto como um mal menor diante da chance de fazer registros desses grupos.
Contato próximo
A Funai não permite que nenhuma pessoa, religiosa ou não, entre em contato com tribos de índios isolados – mas a fiscalização é falha. Entre as demais tribos, o acesso é permitido, e a Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB) estimou, em 2010, que 53,5% das etnias mantêm contatos com missionários – em muitos casos, índios se tornaram pastores.
Os objetivos dos missionários são claros: levar a fé cristã para grupos que não a conhecem, ou ainda não a aceitaram. Em sua tese de mestrado, apresentada dentro da Unifesp, Ricardo Lopes Dias afirmou que o grupo do qual ele participava, o MNTB, tinha por objetivo “a plantação de uma igreja nativa autóctone em cada etnia”. Mas, durante o trabalho de contato com as tribos, os religiosos costumam levar medicamentos, alimentos e formação educacional, que são bem recebidos pelos locais. É esse conflito de décadas entre os missionários e os membros da Funai que agora veio à tona com a indicação de Ricardo Lopes Dias.
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