Na última sexta-feira (20), completou-se 320 anos do assassinato de Zumbi dos Palmares, ícone da luta contra a escravidão no Brasil, último líder do Quilombo de Palmares, em Pernambuco. Não à toa, a data foi escolhida para celebrar o dia da Consciência Negra e tem trazido à tona uma gama de discussões acerca da escravidão no Brasil e das marcas, ainda presentes, no preconceito e na discriminação racial. Lentamente, mas de forma persistente, ativistas e pesquisadores revolvem o passado, proporcionando novas leituras sobre nossa história.
As cicatrizes dessa diáspora também marcam o mundo dos mortos. Em 1996, na região da Gamboa, no Rio de Janeiro, a reforma no piso de uma casa construída no século 18 revelou a presença de ossadas humanas. O que o piso escondia era o chamado Cemitério dos Pretos Novos, local onde escravizados recém-chegados e que logo vinham a falecer eram enterrados. A pesquisa arqueológica revelou a forma como corpos eram indiscriminadamente amontoados, sem qualquer dignidade ou preocupação, até mesmo sem a encomendação da alma, tão cara e obrigatória no catolicismo imposto aos negros.
A discriminação racial fez com que a comunidade negra tivesse de se organizar para ter direito às mesmas práticas de sepultamentos adotadas pelos brancos. Caso contrário, o destino dos corpos eram os cemitérios de indigentes, destinados aos acatólicos e geralmente administrados pela Irmandade da Santa Casa de Misericórdia. Valas comuns como as do Cemitério da Pólvora, em Salvador, onde cães eram frequentemente vistos desenterrando ossos.
As irmandades negras tiveram um papel fundamental na viabilidade da prática do enterro ad sanctos. A invocação de Nossa Senhora do Rosário era costume de devoção desde o século 15 em Portugal, sendo a mais comum entre as irmandades dos pretos, que também contavam com santos negros, como São Benedito, caso de Curitiba. Ainda existiam aqueles escravos que, buscando uma forma de distinção social mesclada à promessa de salvação da alma, empenhavam as economias de toda uma vida para buscar espaço em irmandades brancas e assim serem enterrados gozando de certo prestígio.
Quando da implantação efetiva dos cemitérios públicos, onde teoricamente poderiam ocupar o mesmo espaço que os brancos sem distinção, a discriminação manteve-se no papel. Alcunhados pelo pertencimento a um senhor, eram registrados sem filiação, apenas com o primeiro nome, sempre carregando a marca de “escravo” no campo de observações do livro, mesmo sendo forros ou libertos. A alcunha só vai ser abandonada com a abolição da escravatura, em 1888, o preconceito, não.
Assim como ocorreu após a descoberta das ossadas que afloraram nos pisos quebrados da Gamboa, é preciso quebrar algumas narrativas construídas ao longo do tempo e lançar novos olhares sobre um passado e um presente constituídos por uma raça, não por uma cor. É preciso referenciar lutas e conquistas. Como as de Enedina Alves Marques, que mesmo sendo babá e empregada, almejou ser professora, conquistou o título e foi além: prestou exames, estudou e formou-se como a primeira mulher negra engenheira do Brasil.
Lutas como a de Vicente Moreira de Freitas, escravizado que, como artífice na construção da Catedral, conseguiu comprar sua alforria e fundou junto com outros ex-escravos o primeiro clube negro de Curitiba, o 13 de Maio. Trajetórias incansáveis como a de Maria Nicolas, filha de uma negra e um imigrante francês, professora, pedagoga, pintora, escritora e uma pesquisadora incansável. Escreveu mais de 30 livros, muitos destes contando a história e as biografias dos atores da política paranaense, referência obrigatória a quem se debruça sobre a história do nosso estado.