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Juristas ouvidos pela Gazeta do Povo veem ilegalidades na notificação extrajudicial feita pela Advocacia-Geral da União (AGU) dando 24 horas para que redes sociais removessem suposta desinformação contra o governo Lula.
O alvo da notificação eram publicações afirmando que cestas básicas entregues aos atingidos pela calamidade no Rio Grande do Sul com a logomarca do governo federal seriam, originalmente, doações de particulares, confiscadas por decreto de requisição (mecanismo previsto pela Constituição brasileira) e reembaladas.
O governo rebateu o boato em nota oficial, dizendo que só são embalados com a sua logomarca os produtos que são adquiridos diretamente dos fornecedores com recursos do próprio governo federal, o que não é o caso das doações de particulares.
O pedido de remoção de postagens, fruto da atuação da polêmica Procuradoria de Defesa da Democracia, mira as plataformas de vídeo TikTok e Kwai. Quanto à rede social X (antigo Twitter), a AGU exigiu apenas a inclusão de tarja anunciando o conteúdo como inverídico.
Juristas consideram natural que o governo rebata boatos inverídicos por meio da Secretaria de Comunicação Social, em paralelo com a atuação da imprensa. No entanto, veem como problemático o uso que tem sido feito do setor jurídico do governo – a AGU – nessa frente.
Ausência de ordem judicial
Notificações extrajudiciais, como as usadas pelo governo, constituem, em essência, ameaça de processo para pedir o cumprimento voluntário de uma obrigação.
O advogado Humberto Pedrosa, atuante na área do direito administrativo, considera que, no caso, o expediente “foi usado como forma de coação” pela AGU, o que estaria evidenciado pela estipulação de um prazo para cumprimento. Segundo o advogado, como houve uso da máquina do Estado para exigir a remoção de conteúdo, o caso se enquadraria no artigo 33 da Lei de Abuso de Autoridade, que criminaliza “exigir informação ou cumprimento de obrigação, inclusive o dever de fazer ou de não fazer, sem expresso amparo legal”.
Pedrosa aponta que o Marco Civil da Internet exige ordem judicial para que as plataformas tenham obrigação de remover conteúdos, o que estava ausente no caso; daí resultaria, segundo ele, a ausência de base legal para o pedido.
O mesmo argumento é levantado pelo advogado Rhuan Nascimento Batista, que defende o autor de uma das publicações alvo da AGU, e pela plataforma de vídeos Kwai, que citou justamente esse fundamento para se recusar a cumprir o requerimento de remoção.
Proteção da imagem do governo
No entanto, os juristas afirmam que o problema é mais complexo, porque questionam a legalidade da própria pretensão da AGU de remover “desinformação” contra o governo, com ou sem ordem judicial.
A Procuradoria de Defesa da Democracia, órgão envolvido na notificação, reivindica, em seu site, a função de “preservação da legitimidade” dos Três Poderes – o que se traduz em proteção à imagem do governo mediante a ameaça de processos, inclusive contra conteúdos rotulados como “desinformação”.
O procurador de justiça Marcelo Rocha Monteiro afirma que não existe “direito à honra para o governo federal”. Na visão do procurador, poderia haver, no máximo, direito à honra para agentes públicos individuais – o que não é o caso das postagens sobre cestas básicas, alvejadas pela AGU, já que não citam indivíduos específicos.
A opinião do procurador é corroborada pelo STJ, que estabeleceu, em 2014, que entes públicos, como o governo federal, não podem processar cidadãos e empresas por discursos e publicações que ferem a sua imagem ou honra.
Combate à “desinformação”
Além da “preservação da legitimidade” dos poderes, a Procuradoria de Defesa da Democracia também anuncia entre suas funções o “combate à desinformação sobre políticas públicas” federais. O texto das notificações enviadas às plataformas invoca o “direito à informação” do público, que teria de ser protegido de efeitos do “conteúdo desinformativo”, como o suposto potencial de queda de doações nas enchentes.
Neste ponto, juristas criticam a falta de competência legal da AGU para agir. Para o advogado André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, a AGU está “fora do seu papel” no atual governo, que pretendeu atribuir a esse órgão uma função indevida de “polícia das redes”. Além disso, Marsiglia enfatiza que “desinformação” não é um conceito jurídico presente na legislação brasileira.
Humberto Pedrosa concorda e explica que a função constitucional da AGU é “defender os interesses do Poder Público federal, prestando consultoria e representação jurídica ao Executivo”. Segundo ele, isso não se confunde com a função, distinta, de zelar pelos interesses da sociedade em geral, papel que cabe a outro órgão, o Ministério Público. Para o advogado, “atribuir à AGU a tarefa de combater a desinformação é um desvio de seu propósito original”.
Pedrosa enfatiza que isso não é apenas uma questão de legalidade formal, porque pode afetar a forma como os atos são de fato praticados. O advogado considera um risco atribuir à AGU eventual tarefa de “combate à desinformação”, porque poderia faltar ao órgão a imparcialidade necessária, “dada a proximidade com o governo de turno”.
Em outras palavras, as estruturas de combate à “desinformação” poderiam facilmente se transformar em armas do governante de turno para defender seus próprios interesses políticos, a pretexto de proteger os supostos interesses da sociedade em geral.
Enio Viterbo, advogado e pesquisador das ditaduras militares na América Latina e Europa, faz alerta no mesmo sentido, enfatizando os riscos de se concederem poderes ao governo para combater a “desinformação” contra si próprio. “Hoje é sobre a tragédia do Rio Grande do Sul, mas e se amanhã a AGU resolve defender o governo em sua atuação econômica, notificando os críticos e os acusando de propagar notícias falsas sobre a atuação do governo?”
O procurador Marcelo Rocha Monteiro é ainda mais enfático: “O suposto combate a fake news, pelo que se tem visto, é na verdade uma campanha orquestrada de censura”.
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